quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Rio de Janeiro

quinta-feira, 31 de dezembro de 2009 0
Ano bom. Tornei-me menos estúpido no seu correr. Travei guerras improváveis, algumas verdadeiramente cômicas — a graça do espírito tem dessas aventuras. Sinto-me, contudo, cada vez mais em ostra, cada vez mais hermético. Cada vez mais um filme de Godard.

A infância retorna em momentos como o de agora, em que tenho de arrumar a mala, escolher peças florais, vestir zilhões de sungas para saber qual encolheu desde o último verão — sim, pois não engordamos, as roupas que encurtam. E dessas banalidades a vida vai ganhando tons dourados deliciosos.

Tão dourados que me detive ao colocar na mala o livro que estou relendo — De Profundis, de Oscar Wilde —, por considerá-lo cinzento demais, muito embora, em leitura atenta e entregue, se observe nele algo comparado aos primeiros raios de sol a perfurarem as nuvens negras de uma tempestade finda, como se a luz fosse graciosamente irremediável depois da tormenta.

"Eu tenho o direito de partilhar a Dor, e aquele que é capaz de olhar para os encantos do mundo, e partilhar a tua dor, e compreender um pouco a maravilha de ambos, está em contato direto com as coisas divinas, e chegou tão perto do segredo de Deus quanto alguém pode estar."

E quem estará? Prefiro pensar essa dúvida com os pés afundados na areia à espera de uma batida de limão, enquanto olho para o céu e, reparando Deus em tudo, agradeço apenas por não estar chovendo.

sábado, 26 de dezembro de 2009

Paradoxal

sábado, 26 de dezembro de 2009 0
No piloto automático, sem grandes alturas ou rasantes forçados. Plano pelos amores como uma folha desgarrada de sua copa a flutuar em balé noturno.

Constato minha geração murchando em flor jovem. Ou o pior da minha geração. Não sei, de fato, se hoje conheço os que me serão companhia na maturidade, pois há sementes que demoram, e flores que se colhem tardias para uma primavera maior. Talvez, hoje, me relacione com as pessoas erradas seduzido por um perfume vulgar, volátil como os maus perfumes. Tudo porque a juventude é indecente demais, e maravilhosa demais, para ser devidamente pensada. Aborrece-me a ideia de pensá-la demais, ou do mesmo modo não vivê-la demais.

Sou um nerd que a genética não puniu, e em cujas veias correm a esperteza das ruas, a habilidade do baile de máscaras e a extrema educação sentimental. E por educação sentimental entende-se um instinto imponderável de autopreservação, ou preservação dos nervos e do pleno juízo. Sinto-me covarde às vezes, mas a consciência é uma alegria. E a renúncia, uma Arte.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Orfeu

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009 0
Orfeu resgatou Eurídice da morada dos mortos. Menos mitológica, porém, é a nossa empreitada. Vivemos a ressuscitar nosso cotidiano de miséria com algum artefato mais sublime. Mas os tempos de hoje não captam o sublime. Antes, desmerecem-mo. Tacham de esquisitos os que porventura dele bebem. Impenetráveis, arrogantes, dissimulados, fracassados. Se vivem então de forma ostensiva e franca, tratam de queimar-lhes a reputação, pois uma vida de realização de desejos desafia — e subjuga — as vidinhas pautadas pela contenção das vontades — ou pela hipocrisia que prega que um caráter é tão mais louvável quanto for a discrição ou dissimulação de seu portador. Afinal, um fama não conhecida nunca será uma má-fama.

E eis que a mediocridade varre os corações. Da morada dos mortos, apaixonam-se por carros, por rendas e contatos, por uma genética desejável. Desprezam a verdade, o ímpeto, a imperfeição inquietante. E de pouco adianta bancar o Orfeu e tentar tirar viva alma daquela morada. Preferem envelhecer mal, necessitar de ansiolíticos e dizer que o mundo é dos sortudos e dos espertos — mesmo sem ser um coisa nem outra e ter de se encostar em alguém para sentir-se incluído em tal mundo.

Como insuflar vida em um corpo que vive morto dia a dia? Como explicar que iremos nos arrepender dos nossos juízos mesquinhos quando formos nos deparar com a verdade inescapável? A saber, vamos todos morrer, mas nem todos terão sentido (em) alguma coisa.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Assim caminha a humanidade

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009 0

Liz Taylor

sábado, 28 de novembro de 2009

Zoológico de Vidro

sábado, 28 de novembro de 2009 0
Nossas expectativas em relação a algumas pessoas não se restringem às estabelecidas mediante contrato, ou mesmo por verbalização formalizada. Há destas que simplesmente existem, concordem ou não, e tememos por elas no mesmo grau em que esperamos que as respeitem.

Depois de dois anos, exatos dois anos, me vem à mente a mesma metáfora posta por um moleque sonhador. Agora, autor dela, enxergo seu sentido especular que à época me foi embaçado por algum tipo de sentimento torpe. A saber, em palavras mais dignas que as dele:

A cada afeto concebemos um cristal. Pode haver casos de tormentas avassaladoras que nada lhe fazem senão sacudir sua estrutura, restando íntegra sua transparência. Há casos, porém, de leves brisas — sopradas de não sei que montanha do mundo por um não sei qual deus traquinas — que provocam ao cristal um dano irreparável.

Pois bem. Tenhamos ou não um compromisso estabelecido, o cristal é gerado assim que permitimos nos afetar por alguém, como em Zoológico de Vidro, de Tennessee Williams — e não por acaso saí chorando dessa peça. Tenhamos ou não um compromisso selado, somente nós, e ninguém mais, sabemos o quanto nosso cristal é ao mesmo tempo resistente e delicado — qualidades estas variáveis de afeto a afeto — e o que esperamos de cada um.

Mas sobre a delicadeza o homem é pouco versado. Por isso há tantos cristais trincados por aí. Tanta gente esforçando-se inutilmente, e nisso enxergando exemplo de maturidade, em restituir ao vidro rachado sua integridade lisa e pura, quando na verdade estão rumando aos cacos. E tantos outros, e estes são os piores por serem profundamente estúpidos, usando da delicadeza alheia para jogos de pingue-pongue.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

De novo, o suicídio

segunda-feira, 16 de novembro de 2009 0
Li a obra "O suicídio", do sociólogo Émile Durkheim, para atender a uma inquietude crescente demais pro meu gosto. Após a leitura, e relendo o post passado a respeito do tema, sinto que minhas impressões primeiras beiraram o ingênuo, principalmente por ter crido que as causas internas seriam mais relevantes que as externas para a decisão do sujeito em ceifar a própria vida.

Em suma, a sociedade provoca uma verdadeira corrente "suicidogênea", cuja existência se comprova pelo número mais ou menos constante de casos de suicídio, ao longo de dado período, em qualquer que seja a comunidade. É, portanto, e segundo Durkheim, um fato social, pois é possível conceber uma taxa que mede "a relação do número global de mortes voluntárias e a população de qualquer idade e ambos os sexos".

Gosto do tratamento sociólogo. Mas ainda sinto falta de uma abordagem mais psicológica e centrada no indivíduo. Nada romanceado. Seco e direto.

O que me fica, por ora, é observar como as pessoas que supostamente deviam ter sido "modificadas" pela morte intencional de uma pessoa próxima continuam tão estúpidas e egoístas como outrora.

Afinal — e elas se anteciparam a mim nessa constatação —, trata-se apenas de um "fato social". Uma coisa, um número. Chora-se o morto, mas não se permite afetar pela realidade para a qual ele tentou, em vão, nos despertar.

Se me faz despertar...

terça-feira, 3 de novembro de 2009

terça-feira, 3 de novembro de 2009 0
Um amigo acaba de me reproduzir a máxima de que "ex bom é ex morto". Discordei peremptoriamente.

Ex bom é ex com ódio.

E tenho dito.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Sobre suicídio e despedidas

quinta-feira, 22 de outubro de 2009 1
Um colega, desses de vista e gracejos, matou-se ontem, e seu corpo foi encontrado hoje, flutuando sobre o rio.

Casos de suicídio sempre me inspiram um desalento. É fato que um meio em que pululam preconceitos, e em que muitos se resignam a uma vida mentirosa e ordinária, só poderia ser o salão do qual se retiram precocemente, e em maior grau, indivíduos que"desistem" da festa, tomando-a, na verdade, por um pesadelo interminável.

Mas este não me pareceu um caso de alguém que não resistiu às pressões externas. Antes as internas pareciam amargurá-lo, e por isso despediu-se da vida dedicando aos últimos dias, sem qualquer rancor, uma festa intensa, deixando com palavras queridas aqueles que o veriam pela última vez. Ele era um convidado da festa. Curtiu a festa. Mas precisava ir.

O sentimento público e geral também é confuso. Alguns se juntam à lamentação rasa da perda, dedicando o respeito cabível ao ente que se foi; outros se torturam com a indagação, com a revolta do não saber explicar, do não saber motivo, lamentando, ainda mais superficialmente, antes a vida que o morto deixou do que a pessoa que o mundo perdeu. Daí advêm impressões do tipo "Ele parecia tão feliz".

É preciso se assustar um pouco para abandonar o senso médio e tentar compreender menos as causas do que a própria coragem e covardia que se misturam nesse fogo-fátuo repleto de significações.

Como, afinal, ele ousou nos deixar aqui? Por acaso sabia mais do que nós, que continuamos estupidamente seguindo? Tomá-lo por corajoso, ou covarde, não é o mesmo que emitir nosso juízo sobre nós mesmos? "Se corajoso, ele foi além do que sou capaz", "Se covarde, sou mais forte que ele e, apesar de toda a dor, continuo na luta".

Se ele foi além, terá entendido, antes de nós, e talvez até o que nunca entenderemos, "alguma coisa" cujo entendimento nos seria insuportável? Será que, no fundo, abdicamos desse entendimento ou somos mesmo incapazes de termos nosso coração tocado por ele? Afinal, suportaríamos mesmo entender o sofrimento que é viver, ou, mais ainda, suportaríamos perceber que outros simplesmente não se importam com isso?

É tenebroso sentir que algumas pessoas morrem devido à nossa ignorância, à nossa incapacidade de sofrer e compartilhar angústias, pois a exigência do mundo é que todos sejam felizes imediatamente -- ou, ao menos, aparentem sê-lo --, ou que, não se atingindo esse estado, se tranquem em seus quartos para chorar; se possível, sozinhos, para não incomodar a "felicidade" alheia.

Estas pessoas, afinal, renunciam a algo do qual, dia a dia, tentamos tirar algum tipo de felicidade mesquinha e vaidosa. Como estar em paz enquanto tantos outros sofrem com o que nós mesmos devíamos estar sofrendo? Matando-se, elas nos despertam como num relâmpago, subjugando-nos a uma espécie de "cárcere da vida": "Está vendo esta vida que eu não suportei? Pois bem, é a prisão que te resta."

Continuar não deixa de ser um exercício de arrogância. "Sou sabido de boa parte da dor, mas decido ser forte o bastante para suportá-la e seguir em frente." Penso que os poucos instantes de alegria, mesmo que nos iludam, compensem as dores que se acumulam e acinzentam nossos olhos outrora vivos. É por isso que, embora respeite todos os direitos, não compactuo com todas as escolhas. A vida pesa, pois é ela quem, no fim das contas, tenta tirar o melhor de nós. Por que, então, abandoná-la assim?

Ao morto, meu respeito e meu carinho. Jamais a minha fé.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Amores epiteliais

segunda-feira, 19 de outubro de 2009 0
Os grandes hiatos deste blogue decorrem não mais da preguiça que de outro fato bastante peculiar: Não escrevo enquanto troco de pele.

Lawrence Sterne e James Joyce têm sido meus descamadores. Machado reconstitui o tecido a sua universal maneira sempre fresca e eterna, seguido por Pessoa, que, tal qual britadeira poética, confere à epiderme sua não sei qual graça natural de imperfeição.

E viva o peeling espiritual! A nova camada nem a morte haverá de temer.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Louvores

quinta-feira, 17 de setembro de 2009 2
É um tanto quanto constrangedor sequer comentar o papelão que presenciei e que, piedosamente, tentaram atenuar ao final do espetáculo, com coro apoiado mesmo por mim, afetado por um sentimento algo misericordioso, algo maldoso também.

A palavra escrita, porém, tem gosto pelo implacável e, embora tenha dedicado algumas linhas ao escárnio daquele fracasso, não o farei de modo longo e pontuado, para poupar-lhes da ridicularização a que vocês mesmos publicamente se submeteram.

Não se deixem enganar pelos comentários "positivos", pois estes vêm à apoteose do que chamamos "mediocridade esforçada", outro tipo de misericórdia que deseja não arrancar o sonho à criança estúpida e sonhadora, compensando-a, de algum modo, por viver nas nuvens e tão alheia ao mundo real.

Teatro é feito de competências, e estas não tiveram espaço entre vocês, que confiaram inocentemente em "talentos". Desrespeitaram o público -- nem todos ali estavam para ver algum parente ou amigo em cena -- e colocaram em xeque, de forma irresponsável, a reputação da escola, a qual, quer queira ou não, acaba comprometida com a qualidade, ou o fiasco, da apresentação, por mais que se alegue tratar-se de "alunos".

Sinto-me, agora, aliviado por não ter servido de objeto de humilhação cênica, por mais que, supondo, me tivesse destacado individualmente, pois tenho em alta conta o tempo e a paciência de amigos e familiares -- e estes certamente não me têm por medíocre e confiam no bom gosto e na grandeza -- ou ao menos decência -- das empreitadas de que participo. Desapontá-los com uma palhaçada ter-me-ia sido o fim, por mais que meu orgulho, filho da hipocrisia, tivesse tentado tirar disso tudo um eventual "aprendizado" ou "crescimento". Talvez eu enganasse alguns por algum tempo, mas nem todos por todo o tempo, e o que me restaria seria tão-somente a sensação do MICO.

Houve ressalvas. Alguns momentos bons. Algumas surpresas agradáveis. A piedade há de agarrar-se justamente nisso tudo para exaltar a mediocridade dos que "fazem acontecer mesmo aos trancos e barrancos". A meu ver, é muito pouco, e humilhante, para a ambição que havia. E a suma das sumas é inequívoca:

Gastaram demais. Trabalharam demais. Mas não entenderam muita coisa.

Assim como Espantalho não entendeu, posto que só piorou a desgraça do ano passado.

domingo, 13 de setembro de 2009

Risonho e límpido

domingo, 13 de setembro de 2009 0
Vergonha alheia.

Espantalho não dirigiu porra nenhuma. Foi a Vanusa.

Eu quero o vídeo, tsá? O YouTube implora.

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Ligações (quarto ato)

segunda-feira, 7 de setembro de 2009 0
Não corresponder às intenções de algumas pessoas pode torná-las ranzinzas, amarguradas e vingativas.

Prova disso é a famigerada Marquesa de Merteuil, do filme Ligações Perigosas, especialista em intrigas, jogos de bastidores e muita, muita dissimulação. Ela, apesar de sua própria baixeza, ao ser informada do Caso Espantalho, não pôde conter a estupefação:







Marquesa de Merteuil resumiu bem o espírito geral, principalmente em relação à quebra (ou demolição?) da confiança e cumplicidade que havia entre Bela e Espantalho, por obra deste, caso que, afinal, horroriza até mesmo os piores vilões e os mais lamentáveis caracteres.


Um zoom, para quem não tem acesso ao meu álbum no Orkut (fins de 2008):



Repito: Não corresponder às intenções de algumas pessoas pode torná-las ranzinzas, amarguradas e vingativas. É preciso bem pouco para que, de uma hora para outra, resolvam não gostar mais de você; para que, ao passar, torçam o nariz para você; para que colham o apoio dos outros contra você; para que, enfim, tenham uma "rixa pessoal" em relação a você. No fundo, pode ser puro recalque de um borra-botas!

No entanto, se é possível colher uma flor da desolação, ela não é senão a amizade forte, e cúmplice, que nasceu entre mim e Bela, em decorrência do trauma conjunto por que passamos. A princípio, um ao consolo do outro, servimo-nos de amparo e refúgio. Agora, passado o impacto, consentimos aproximar nossos afetos, seguindo a corrente natural do apego quase familiar.

Tanto que Bela já conheceu minha mãe (não é fofo?).

"Capitu era Capitu, isto é, uma criatura mui particular, mais mulher do que eu era homem." Essa frase, cujo autor, Bentinho, é o maior ciumento de nossa literatura, poderia muito bem ter sido dita por sua sombra Espantalha, cujo ciúme desmedido é aplicado a sua vidinha provinciana e sem lirismo. Pois, agora, conhecendo-a bem, posso afirmar: Bela é muito mais mulher do que Espantalho jamais será homem, ou ator, ou diretor, ou mesmo pessoa que mereça afeto grande e generoso, como o dedicado pelas muitas crianças que rodeiam Bela no teatro, e que encontram nesta uma devolução sincera.

É de se admirar, portanto, que qualquer pessoa minimamente inteligente e esclarecida continue firme, por muito mais tempo, ao lado de um Espantalho cruel e seco, por mais "bondade" que se esconda sob sua palha, pois há limites para suportar, a cada passeio ou reunião, o mau humor, o negativismo, a cara de cu e o ciúme por toda e qualquer perna de cadeira que se "insinue" ao seu parceiro. Serão bravos os que persistirem, e talvez a estes caiba o céu (ou talvez, simplesmente, uma vida contaminada por más vibrações). Como consolar, ou aconselhar, uma pessoa assim?

Sucesso! É o que Espantalho espera. É o que Espantalho acredita ser suficiente para iluminar os olhos que o contestaram, que duvidaram de seu talento (que, aliás, existe!). É o que Espantalho confia ser o caminho de sua própria redenção, como se uma consagração inquestionável pudesse apagar as lembranças da devastação, do desânimo e de um processo triste e mutilador, escondendo todos os corpos no armário. Ora, Espantalho tolo! Sucesso, depois de seu trajeto, é apenas o mínimo que esperam de você -- e é uma expectativa com olhos de lince --, pois o que vier de contrário, ou de sobra, servirá apenas ao engrandecimento de sua própria miséria.

Pois é simples, e fiel, um pensamento de Gandhi que nunca me esqueceu:

"Não existe caminho para a felicidade. A felicidade é o caminho."

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

O tamanho de nós (terceiro ato)

segunda-feira, 31 de agosto de 2009 0
É preciso concentrar-se para manter-se em um estado equilibrado de revolta e bom senso. Por isso, mesmo afastado do ambiente em que rastejam as cobras -- o que, decerto, alivia a peçonha e desaquece o ímpeto --, tento me esforçar em manter acesa, pelo menos por ora, a centelha do ressentimento, forma pela qual luto contra a resignação fácil diante da ignorância a que fomos expostos, buscando trazer à luz algum juízo ou, que seja, a própria vergonha na cara.

Não abro mão, porém, da clareza de ideias, e as defendo, agora, até o fim, ainda mais por saber que tentam a todo custo deturpar as palavras que fiz ESCRITAS justamente para que estas não dessem margem a tantas dúvidas e interpretações. Não sejam ingênuos, ou mesmo boçais, em não perceberem a diferença entre discriminação e INADEQUAÇÃO. Ponto! Não reproduzam a ignorância daqueles que desejam, mandando duas almas ao Inferno, fazer suas próprias escaparem pelos fundos.

Dito isso, fica a alegria de saber de toda a repercussão do blogue e do apoio recebido, mesmo que velado por medo de retaliações (para uma ideia do ponto a que chegaram). Talvez eu incorra mesmo em um romantismo caduco e exacerbado, mas nunca entendi o teatro senão como o reduto de espíritos inquietos, questionadores, fazendo-se artistas por uma necessidade quase sobre-humana de expressar os demônios interiores (por favor, não me acusem também de satânico ou de querer promover exorcismos, ok?). Nisso, vejo até que enlatados como A Bela e a Fera podem ser feitos com o mínimo de dignidade, houvesse um processo que privilegiasse o ator, a personagem e suas motivações -- sem cartilha robótica de qualquer natureza. No entanto, o que presenciei foi a completa falta de tino para o estabelecimento de prioridades (papelão, espuma e decoreba), uma ciumeira deslavada e pessoas dedicando-se MUITO sem saber muito bem a razão de tudo, que tipo de aprendizado e crescimento teriam a partir daquilo, em espécie de cegueira fanática e EXPLOSIVA. Ou minha visão de teatro vai de encontro ao que ele verdadeiramente é? Seria ele um atoleiro de pessoas sem discernimento, com tempo livre um pouquinho maior, e com disposição para gastar e serem exploradas, que desejam mesmo, no fundo, é ter seus 15 minutinhos de fama no palco (mesmo que camuflem isso alegando "amor ao teatro"), doa a quem doer (e aqui se mostraram profissionais!), para impressionar, no fim de cada processo, meia dúzia de familiares e amigos? Por romantismo, talvez eu não consiga me convencer integralmente disso, pois não é falsa a admiração que tinha, e continuo a ter, por algumas pessoas daquele elenco.

Somos autores de nossa grandeza. Decidimos, ou não, seguir um Espantalho, e tomá-lo por "mentor". Compactuamos com o jogo sórdido que não cultiva ESCLARECIMENTO algum, apenas segrega e expulsa e vira a cara. Comprometemos boas amizades a troco de pouco, ou nada. E tornamo-nos um esboço do que poderíamos ter sido, não fosse nosso profundo egoísmo e nossa delicada vaidade. O grupo de A Bela e Fera tornou-se frio e triste muito antes de sairmos, ou já o era bem antes de nascer, como filho maldito do pai. Agora, sobretudo, é um grupo envergonhado, embora ainda se disponha a cantar e sapatear alegremente sobre a "merda" que há de receber, em vista de toda essa promoção. Não podemos evitar, contudo, ao retirarmos a maquiagem do rosto, que encaremos a própria face refletida no espelho, como quem se pergunta, em instante sozinho, se tudo por que passou valeu a pena.

"Tudo vale a pena, se a alma não é pequena." Portanto, por favor, quando se pegarem a sós, expliquem a si mesmos a estatura de vocês.

E não contem a ninguém...

***

No próximo post, vídeo com depoimento esclarecedor sobre as atitudes perigosas do Espantalho, por quem mais entende do assunto.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

A Bela e a Fera Dançando na Chuva

segunda-feira, 24 de agosto de 2009 0
Admite-se, em ópera clássica, que o papel em princípio idealizado para uma atriz magra e esbelta seja defendido por uma soprano rechonchuda que porte um vozeirão. A “licença poética” justifica-se pela grande exigência vocal requerida e também pelo aspecto erudito — e por isso menos atrelado à imagem — desse tipo de encenação. Mesmo assim, Maria Callas perdeu peso.

A Bela e a Fera, porém, em vista de seu caráter industrial e — por que não? — pasteurizado, segue a cartilha de uma ditadura contra a qual poucos ousam manifestar-se. Afinal, o público espera uma revolução social em cena? Se existe uma concepção preestabelecida, se as características físicas das personagens estão fixadas no imaginário das pessoas, e se a proposta da montagem nem de longe flerta com a ousadia ou INOVAÇÃO (como Romeu e Julieta no sertão, de Ariano Suassuna), por que derrapar justamente nos quesitos sobre os quais a expectativa humana recai, inicialmente, com maior curiosidade, sob o risco de incorrer em profunda frustração?

A atitude abominável de substituir, a um mês do espetáculo, os atores centrais do referido musical, segundo justificativas torpes, não expôs somente as fraquezas éticas do elenco, como também o descaso em relação ao simbolismo que uma história Disney representa, comprometendo mesmo a identificação imediata do público — que busca sempre repetir a experiência de rever os tipos a que está acostumado —, em prol de uma necessidade exagerada de “aparecer” custe o que custar, tais quais pavões em concorrência pela fêmea. Por mais que cante bem, ou melhor, como não evitar o estranhamento ao vermos no palco uma Bela afro (mesmo lindíssima), cujo parentesco parece mais chegado a Lefou do que ao próprio pai, o velho Maurice? Ou um Gaston gordinho, tendo-se-lhe, ainda, perdoado o aparelho ortodôntico? E não precisam falar de mim, porque mesmo eu, como Fera, hesitava quanto à minha estatura, inadequada ao papel.

Se o vulgo Espantalho faz questão de salientar que se trata de teatro AMADOR — como se isso justificasse seu amadorismo —, não haveria mesmo a necessidade de tal rigor na escalação do elenco.

No entanto...

Se amizades são recorrentes no teatro profissional, o que dizer então no amador? Como desenhar, portanto, a ÍNDOLE de uma pessoa capaz de fulminar uma amizade de ANOS para sustentar uma substituição que, além de não combinar com a idealização do espetáculo, privilegia pessoas que sequer são do teatro que patrocina o projeto? Por mais amador que seja um trabalho, um diretor, ao convidar uma atriz que não canta, e ao submetê-la a MESES de ensaios para dotá-la de tal recurso, assume com esta um risco que, por DECÊNCIA, deve ser corrido por ambos até o final. Se, aproveitando-se do afloramento das emoções do elenco por conta de desentendimentos e mexericos, Bela foi retirada para “ser protegida”, em espécie de “dois coelhos com uma só cajadada” (pois não sabemos se eu fui com ela, ou ela foi comigo), não era um fiasco que pretendiam evitar, mas a própria dimensão de amadorismo que, infelizmente, o Espantalho não consegue contornar em todos os quesitos desta montagem. Justo? Justo, se não houvesse tantos princípios e valores a serem preservados nesse tipo de decisão que envolvia amigos de longa data. Foi, portanto, um ato mesquinho e inescrupuloso, que deve ser marcado no currículo dos “profissionais” que o perpetraram.

A indignação, na escola, corre solta, mais contida em alguns, mais manifesta em outros; não se iludam, pois, de que não exista o incômodo geral criado por essa situação. Se escrevo agora, é porque desejo, por sentir-me lesado, que contas sejam acertadas — e que poderes sejam revistos — logo após o festival, pois, agora, preserva-se em relação a vocês uma espécie de “respeito humanitário” — o qual considero justo — pelo trabalho que até agora conceberam e que, portanto, devem concluir. Todavia, ainda é de estarrecer que pessoas do elenco, tão amigas e extremosas, tenham admitido servirem de comparsas nesse gesto criminoso — perdoem o tom hiperbólico, mas o exagero também é do mundo. E vai outro: Somos, mesmo em pequena escala, e resguardadas as proporções de nosso microcosmo, reflexo infeliz da política de nossa nação, cujo partido governista (PT) chega a render-se à chantagem barata, destruindo reputações importantes da própria legenda, para garantir o continuísmo de um senador corrupto em favor do apoio de seu partido (PMDB) à candidatura da predileta do então presidente da República nas próximas eleições.

Os prediletos do Espantalho não éramos nós, sabíamos, ainda mais depois que ele descobriu as maravilhas da técnica vocal aplicada ao canto — sim, pois esse ensinamento foi trazido a posteriori por seu namorado, que o convencera a desistir da antiga pretensão, a saber: levar o desenho da Disney aos palcos (com texto já transcrito, aliás), em cópia ipsis litteris de obra feita para o cinema e disponível em DVD (pasmem!), o que acendia em muitos o temor de uma reprise do fracasso de Cantando na Chuva, versão sem ritmo e desastrada de um clássico do CINEMA. O diretor deste espetáculo, aliás o mesmo de A Bela e a Fera, em mais uma atitude fascista e vaidosa, manifestou-se descontente com o fato de que sua produção havia se tornado na escola, naturalmente, um (mau) exemplo — pedagogicamente cabível, destaca-se — de COMO NÃO FAZER TEATRO, o que ele muito tentou censurar, em vão.

Agora, novamente “privilegiando” o teatro, ele elege como substitutas de seus dois “problemas” duas pessoas saídas de um coral, preterindo o rol de elenco da própria instituição que patrocina, em parte, seu espetáculo. Optou-se, assim — e nisso vai acentuada carga ideológica —, ensinar, em menos de um mês, interpretação e dança para bons cantores — o comentário geral do próprio elenco, após assistir ao primeiro ensaio dos novatos, foi de que estes não estão assim tão “preparados” como o Espantalho quisera lhes apresentar —, em vez de ir pelo bom senso de seu contexto profissional: ensinar canto, mesmo que desesperadamente, a bons atores — os quais não faltam à escola, e mesmo com experiência em música.

Que não sejam cínicos em afirmar que nossas eventuais faltas tenham nos desqualificado ao posto de protagonistas, e que a única saída, portanto, seria recorrer a cantores treinados. Por sermos “amadores”, e justamente por isso, deviam ter tido mais respeito e consideração, pois cada qual tinha boas justificativas para não cumprir a rotina mal programada de ensaios em pleno horário comercial, e cujo texto, despudoramente atrasado, eu mesmo ajudei a transcrever a partir de vídeos da internet. E como não me indignar, também, com o fato de que cheguei a participar de vários encontros de um coro que, em rigor, não precisava de minha colaboração (seria, sim, muito fácil abdicar daquelas sextas-feiras na casa branca, sem prejuízo algum ao meu papel, se pensasse tão-somente em mim), e que só cumpria para estreitar as relações com a maioria do elenco, com a qual eu somente poderia contribuir cantando por detrás das cortinas?

Por sorte, é permitido expressar-se livremente, assim como poderão, ao fim do musical, pegar do microfone e, aos prantos copiosos, dizer que “foi um grande orgulho estar aqui, ter concluído enfim um trabalho árduo e desgastante, superando obstáculos e pessoas que quiseram nos desestabilizar". Clap!, clap! clap! Será fácil. E serão aplaudidos. Mas não se enganem a si mesmos, porque a culpa é um fantasma que, terminado o pior pesadelo, continua arrastando seus grilhões por onde quer que nós vamos, assumindo diversas formas e pessoas. Ciúmes e traições são a tinta das grandes derrocadas, em especial as morais. Quanto a mim, continuarei escrevendo, posto teimoso e irritante que sou, e também porque estou seguro da máxima que valeu a Hamlet uma nota de credibilidade: “Sou cruel porque sou justo”.

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

A Bela, a Fera e os Monstros?

segunda-feira, 17 de agosto de 2009 0
O mundo já perdeu as contas de suas barbáries.

Presenciei, no sábado, um tribunal grotesco. Um grupo que, agindo como grupo, escondeu a própria força individual para proteger as vaidades de um diretor que fez uso de TODOS DO GRUPO, deturpando palavras DE TODOS VOCÊS, para sustentar uma posição tirânica de pessoa de pouca grandeza, cujo desejo era tão-somente ver duas cabeças rolando.

O assustador não foi falado "em grupo", porque o politicamente correto não admite uma verdade inconteste: misturamos, sim, trabalho às nossas emoções pessoais. O problema é que algumas pessoas misturam isso muito mal...

O Espantalho disse, sim, entre quatro paredes, que havia entre mim e ele uma "rixa pessoal". Não sejam ingênuos em acreditar que isso não vem ao caso agora, pois este talvez seja todo o caso, e sejam sinceros consigo mesmos na reflexão particular que terão a partir disto: a tal "rixa" motivou muito da postura fria e preconceituosa que o Espantalho, astuto no seu ciúme e nobre na sua insegurança, adotou ao longo da montagem, indispondo-se discretamente ao seu desafeto por conta de um sentimentozinho vulgar e rasteiro, iniciado, para sua infelicidade, depois que me fizera o convite para o elenco. Cheguei mesmo a ser ignorado, a exemplo de indelicadeza, quando lhe estendi a mão em uma balada, para cumprimentá-lo, situação que de tão constrangedora e patética suscitou um admirável pedido de desculpas de sua parte, dias depois, como de quem se envergonha, mesmo que provisoriamente, da própria miséria de espírito.

Seguiram-se a isso os mesmos ensaios sisudos, de cara amarrada (a típica cara de cu), durante os quais fui respeitosamente — e não por ele — aconselhado a não ter alguns tipos de brincadeira que pudessem tumultuar o coraçãozinho frágil do Espantalho, que sempre amou desesperadamente e sem freios ABS. Que fosse aquela sua natureza — já há muito me haviam alertado dela — , do tipo que passa pela vida roubando o bom humor alheio enquanto demonstra algum tipo de competência específica. Mesmo assim, que lamentável ter transformado o que me era um prazer — ensaios com a galera do teatro — em uma obrigação tão mecânica quanto a montagem de uma pizza do Cascata, além de ter dificultado sobremaneira a tarefa de me aproximar mais de vocês.

Exposto isso, não é difícil supor que outras atitudes ele, mesmo inconscientemente, veio a tomar comigo, fosse pelo estoque limitado de paciência a mim reservada (sinto mesmo que ele tentou, não serei injusto, mas a repulsa foi maior do que ele), fosse pelo discreto desejo íntimo de que eu não me empenhasse tanto, de que o não procurasse tanto, de que, enfim, lhe desse motivos para justificar racionalmente, diante dos outros, sua crescente antipatia passional, mesmo em detrimento de seu próprio espetáculo, visto que ele se sente em condições de resolver qualquer problema de última hora. No entanto, teria eu tido tão pouca vontade a ponto de ele relegar ao último mês do espetáculo a concepção do figurino do seu principal "problema" na peça (não vou dizer "protagonista" para não ferir os mais sensíveis)? É pecado eu dizer que se tratava de um figurino estratégico, assim como outros JÁ IDEALIZADOS (Bule, Relógio, Cômoda)? Fosse um diretor cauteloso e minucioso da MANEIRA CERTA E QUE FAZ ACONTECER, já teria se preocupado em prevenir-se de um desastre, posto que, ao contrário dos outros personagens, este, o da Fera, teria sua transformação, fosse lá camuflada por qualquer efeito de luz, NO PALCO, diante dos olhos da plateia, em torno de 20 segundos. Minha insegurança, então, girava principalmente em torno da preocupação de eu não parecer um Corcunda de Notre Dame, sendo Fera-de-última-hora, e de não esquecer um chifre na cabeça, sendo príncipe-mal-ensaiado. E isso penso que só poderia ser resolvido com planejamento e com o "carinho" que o diretor nunca se mostrou disposto a conceder ao "problema" de seu espetáculo, a despeito do que dedicava ao papelão. Sem contar o atraso no ensaio de atores (é correto, para todos — lembrando que nem todos entram "de férias" —, fazer ensaios prolongados e exaustivos de última hora para compensar esse erro estratégico?), o descaso com a interpretação, com a composição de personagens (ah, veja o vídeo do YouTube, né?!), com a química dos DOIS PROBLEMAS do espetáculo, cuja história JUSTIFICA TODA A PEÇA (se alguém questionar algo sobre isso, que compre algum livro sobre a construção do texto narrativo e pare com ironias tacanhas e choros sem vela).

Sejam críticos. Cobrem satisfações das pessoas certas, e DIRETAMENTE A ELAS. Não admitam servirem de joguete para as intenções de um diretor de origem e passado obscuros, que a todo momento se serve da indelicadeza para referir-se a um ator que faltou, ou que atrasou, ou que saiu mais cedo, justamente porque este não está presente, coletando o apoio da "maioria" que somente enxerga o fato, e não as circunstâncias, aliviada por não ser a vítima do momento.

Houve aquele sábado em que falei tudo, na frente de vocês, o que me desagradava. Por mais que eu tenha ERRADO nos modos, e eu errei MESMO, como não chamar de vergonhosa a atitude que tiveram de apenas demonstrar a insatisfação com as minhas palavras UMA SEMANA DEPOIS, tendo havido, no mesmo momento subsequente ao meu protesto, espaço para QUALQUER UM manifestar sua reprovação? Por que ninguém falou comigo? Vocês também precisam pedir, antes, autorização para sentir-se magoados e formar uma opinião? Minha personalidade nunca foi aberta a conversas delicadas? Por que, uma semana depois, o discurso daquela que se disse profundamente ofendida foi justamente de quem não tinha estado presente para ouvir DA MINHA BOCA minhas palavras? De quem é a miopia e a falta de integridade nessa história? Vocês se reuniram em conluio e, com o "coração dilacerado", excluindo-nos sumariamente e sem chance de defesa, decidiram "pelo bem do grupo", sendo este apenas a intenção programática de um diretor que se presta ao terrorismo emocional, envolvendo até mesmo CRIANÇAS, e às intrigas para manipular as paixões de sua equipe, sob o sórdido ultimato do "eu ou eles". Negam?

O mundo chama isso chantagem. Mas, para quem tem jeito com as palavras, o dito fica pelo não dito, e a ameaça, se não posta oficialmente, entra nos corações como uma bomba armada. Era esta bomba que vocês temiam que fosse acionada pelo olhar do Espantalho quando tiveram a chance de opinar como pessoa, e não como grupo. Foram, por isso, desumanos, e talvez isso só se lhes desperte daqui muito tempo, quando a consciência, se a restar, for má companheira do travesseiro.

Calculem bem o quanto desejam ser estupradas com horas de ensaios desrespeitosos e mal informados. Quanto dinheiro permitem que seja tirado de suas casas para sustentar um sonho mal planejado — mesmo plagiado —, de futuro absolutamente incerto, sob a regência de alguém cujo passado já apresentou fracassos frutos de pura teimosia e negligência? Pensem bem em quem vocês tomam por vilão, porque este, muitas vezes, não é aquele que levanta mais a voz ou diz as palavras mais duras NA FRENTE DE VOCÊS. O vilão é maestro dos bastidores, de onde recolhe sorrateiramente seus tapetes.

E não sejam tolos em pensar que este texto é uma tentativa desesperada de reintegrarmos o elenco. Tampouco somos justiceiros querendo espalhar a dignidade pelo mundo. Mas uma máscara tem de cair, porque a pessoa por trás dela está DESTRUINDO muitas coisas boas e, principalmente, PESSOAS que a amavam (não estou incluído entre elas, ok?), simplesmente porque ela, agora, ama outra coisa e tem um sonho megalomaníaco para realizar. Está na hora de vocês, COMO GRUPO, tomarem a dianteira e exigirem, sim, uma postura mais ética e franca por parte do diretor, sem ficar com o “cu na mão” temendo não se apresentar. Tenham HOMBRIDADE, por mais dinheiro e tempo que, como nós — e MAIS DO QUE NÓS, assumimos —, tenham investido nesse projeto. Se não é “nada pessoal”, como ele é capaz de dizer, ao ouvir a proposta de reconciliação apresentada, que NÃO subiria mais no palco porque não suportava mais olhar para a nossa cara (oi?). Se não foi nada planejado, como havia duas cartas na manga para nos substituir tão prontamente? Como não houve hipocrisia, se a Bela escutou que foi tirada do espetáculo para “ser protegida”? Enfim, sejam críticos e não adotem a postura vergonhosa e covarde de muitos. Isso, obviamente, não é geral, porque algumas pessoas demonstraram, sim, com aperto na voz — o que muito nos emocionou —, o grande desconforto que foi atender à ordem insana e irresponsável de um profissional desequilibrado. Que estas, então, se levantem e não sejam marcadas pela omissão que já provocou tantas crueldades por conta do espaço concedido àqueles que se expressam tão bem quando movidos ao rancor apaixonado, irrefletido e inconsequente. Pensem, assim, que o respeito à autoridade deve vir depois de sua paz de espírito.

Vocês irão se apresentar? Possivelmente, se tiverem estômago — e isso muitos provaram que têm de sobra. Mas sob que preço? Terão vendido a própria consciência por alguns minutos de espetáculo exuberante, caro e luxuoso? Teriam sido mesmo capazes de passar por cima de quem quer que fosse para conseguir isso? Querem que sejam lembrados assim, tais como os alemães ainda o são por terem sido coniventes com um assassino que lhes prometera a glória? Pois muita coisa pode ser justificada, menos a imbecilidade, e para esta, embora haja perdão, não há esquecimento. E vocês caminham rumo a ela, enquanto enfeitam a data nobre do festival, motivados, alegres e ambiciosos, sob o espectro de protagonistas que não são do TPC.

Pensem bem em como vocês desejam ser lembrados. Pois estes serão vocês.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

quarta-feira, 22 de julho de 2009 0

Não se subordinar a nada — nem a um homem, nem a um amor, nem a uma ideia, ter aquela independência longínqua que consiste em não crer na verdade, nem, se a houvesse, na utilidade do conhecimento dela — tal é o estado em que, parece-me, deve decorrer, para consigo mesma, a vida íntima intelectual dos que não vivem sem pensar. Pertencer — eis a banalidade.

Fernando Pessoa

terça-feira, 23 de junho de 2009

Sobre meninos e lobos

terça-feira, 23 de junho de 2009 0
Eles são os fracos.

Continuamos aqui, erguidos, porque sabemos o que fazer. E fazemos

Seremos, inevitavelmente, consumidos pelas nossas paixões e renegados pela gente que não compartilhava delas; mas, mesmo aí, será tarde demais, porque já teremos cavalgado as entranhas do mundo a disseminar a nossa volúpia, o nosso ímpeto, a nossa glória inconfundível e maravilhosa, a encravar em poucos e seletos corações a consciência inefável de tudo aquilo que fizemos existir, vibrar, rebentar de dentro para fora como uma supernova improvável cuspida de um buraco negro impossível.

Nós somos os fortes. Não teremos a honra de enterrar nossos pais, mas teremos feito da terra, este elemento que nos absorve tanto na vida quanto na morte, uma mãe menos constrangida de receber os corpos de toda a gente, boa ou má, que amamos durante esta faísca que chamamos geração.

Nós somos os fortes. E isso porque não existe, para nós, grandes malditos, outro destino possível.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Sereias

quarta-feira, 17 de junho de 2009 0


Folgo em pensar que um terço da vida já me tenha passado. Os cientistas andam querendo esticar o denominador, buscando em seus japoneses distantes de ilhas longínquas o segredo da longevidade. Mas é algo que não quero por pura preguiça de refazer as contas e abrir mão do romantismo de crer que da vida já comi um pedaço de três.

Um pedaço já se foi, tendo eu demorado para perceber que não se come com as mãos. Agora, versado na mesa e nos costumes, deliciosamente adio os talheres para contemplar a fartura, a beleza, assim somente com olhos, como a gracejar da vida antes de metê-la dentro, convulsiva, digestiva, vinho e pão.

Assim como se contemplam os amores antes de metê-los ao coração. Mas antes mesmo de chegarem a ele usam estes o mesmo nome. Fato! O nome que virão ter dentro já o têm fora, e por isso a tortura vem na mesma força, porque tudo é amor. Eu, ainda mais torto, me detenho no excesso romântico de não amar direito quem se deve, e amar demais quem não se pode, ou não se deixa.

Desde pequeno noto esse desvio de conduta. Uma criança calada, de olhar oblíquo, a espezinhar os amores que se lhe sentavam ao lado para dividir o lanche, enquanto torcia o pescoço para adorar os que indolentemente balançavam suas lancheiras doutro lado do pátio, acenando perigosos como as sereias de Ulisses.

Cresci, e já lhes adiantei ter andado um terço, mas pouco mudou senão o aperfeiçoamento da dissimulação. Atado ao mastro, ouço as delícias do mar, as baladas, as drogas da felicidade, mas já não me jogo em direção às pedras onde as ninfas tremeluzem suas caudas úmidas e espumantes.

Sou mais forte, mais embrutecido. Mas continuo a ser um desses grandes malditos de ouvidos abertos a tudo, com o coração a palpitar ao som da melodia doce de um mundo esquecido.

Esqueceu-se. Como às vezes dois corações se esquecem um do outro, um afogado na noite, outro vagando sem rumo. Ambos sem compreender por que razão, no dia seguinte, quando a luz penetra as alcovas do espírito, batem tão desesperadamente na vontade de trocarem entre eles uma simples palavra.

E essa vontade é tudo; diz tanto com tão pouco. Mas nos é difícil compreender isso. Já são tantas as sereias, e tantos os cantos insindiosos, que não raro temos, apaixonados um do outro, dois Ulisses presos ao mastro. E o amor continua sendo mais misterioso que o próprio oceano.

sábado, 6 de junho de 2009

Rastros

sábado, 6 de junho de 2009 1
Meus olhos cravaram nele uma espécie de marcação, quer luminosa, quer aromática, que o faria desenhar um rastro durante toda a noite à minha perseguição.

Enfiei os olhos na nuca e o vi passar detrás. Segui a trilha e, vendo-o parado, me postei ao lado, como quem divide a mesma linha do horizonte colando as estrelas à sorte de qualquer abotoadura.

Como ouso esquecer o que disse a ele? Só me lembra o sorriso acanhado, o gesto renitente, os olhos querendo medir. Com o tempo, porém, confiou ao íntimo que gostaria de mim, atenuou o ímpeto e aceitou a companhia, desvencilhando-se vez ou outra de um aperto, ou de um rosto mais colado.

Foi toda a noite a estátua da inocência. Eu, há tempo libertino, me aborreci com a demora, com a procrastinação, e desanuviei no ar, com a mão impaciente, a mínima suspeita de que tivesse aquele encontro traços do autor maior, que dita antes ao coração que aos lábios sequiosos.

Lascivo contrariado, despedi-me abrupto, pedindo para que não me procurasse mais, pois por duas vezes, depois de perdidos um do outro por iniciativa minha, ele inventara de me achar de novo, assim casualmente, o que — e não é difícil presumirem — me acendeu novamente, e por duas vezes, as intenções.

Resolvido a apagá-las de vez, saí sozinho, deixando, agora eu, um rastro de fúria que não se podia seguir senão pelo olhar dele, de anjo paralisado pela contemplação do primeiro voo do diabo.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Vícios

segunda-feira, 1 de junho de 2009 3
Seríamos nós todos libertinos das ruas, vagando noturnos em busca de um prazer indecifrável? Os fins de semana parecem rituais. Sair é quase uma obrigação. E só se mantém longe do vício quem nunca o experimentou. Aliás, ninguém menos digno de confiança que um homem sem vício algum.

Se a arte vivesse a par com a virtude, não teria havido, e não haveria ainda, tantos poetas bêbados, viciados, com alguma compulsão sexual. O conceito de poeta, hoje, e para mim somente, não se restringe apenas aos boêmios esfarrapados que erram pela vida poeticamente sem dinheiro, como também aos homens retos de qualquer profissão liberal que tiram de seu cotidiano alguma flor eterna, botando-a em uma estufa iluminada na qual floresce aos olhos da criação.

Esse parágrafo, aliás, é digno de figurar entre os ilustres exemplares da estética do exagero, mas cá entre nós que o mundo mesmo triunfa quando podemos deitar nossa mente na contemplação de uma ideia simples e exageradamente ornamentada.

(E este é um vício que tenho, de interromper uma tese para o desfile de outra, e depois querer conjugá-las ambas, sendo embora rivais, ou mesmo tão díspares que não podem discursar juntas numa mesma cátedra.)

Meu vício, portanto, é assimilar coisas demais, querer um tanto de tudo ao mesmo tempo, e não concluir disso absolutamente nada, pois tudo torna-se demais e obscuro, embora antes, claro, engane a todos com meu jeito instruído e elegante de ser absurdamente oco, mas abrangente.

A intenção era falar de vícios e de pessoas interessantes, e daqueles dentro destas, mas a digressão me tombou e fiquei no meio do caminho a adivinhar para que lado correu meu cavalo. Mania de cavalgar com a cabeça pendurada à lua.

sexta-feira, 29 de maio de 2009

sexta-feira, 29 de maio de 2009 1

Gostei da cores.

terça-feira, 26 de maio de 2009

Curso Christian Bale de Expressividade

terça-feira, 26 de maio de 2009 0
Cara para qdo dizem que vc bate na mãe.
Cara de Psicopata Americano jogando a serra elétrica pela escada.

Cara de Batman meeting Robin.

domingo, 24 de maio de 2009

Entre lordes e jecas

domingo, 24 de maio de 2009 0

É com espanto que percebo em mim uma impaciência crescente em relação aos temperamentos difíceis.

Antes, se era estratagema do encanto, hoje o gênio intratável só me demonstra o quanto somos primitivos nas relações humanas, quando simples gestos de cortesia e gentileza seriam bem mais eficazes para penetrar o coração e cravar nele as verdades que o espírito atormentado considera por bem enfiar à garganta dos outros.

Não que eu me recuse a algumas inimizades, pois as tenho por fundamentais na constituição da nossa persona pública e moral.

Só não considero mais adequado, principalmente quando se ultrapassa certa idade, servir-se da antipatia e da pura falta de educação para galgar alguns desafetos e, por que não, algumas admirações obscuras, impondo um modo de pensar soberbo e arrogante.

É possível manter-se genuíno mesmo calando em nós uma vontade imensa, e muitas vezes justa, de mandar alguém tomar no meio do cu.

Entre um jeca espontâneo e um lorde dissimulado, fico com o último.

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Autocensura

segunda-feira, 18 de maio de 2009 0
Havia postado muita coisa, mas a Ginsu atuou e fiz alguns cortes.

Amadurecimento também significa controlar o temperamento e tentar, na medida do possível, espalhar somente coisas boas, por mais que elas nos deem sono. (Sim, podemos ser irônicos na ternura.)

O post versava sobre a festa do deck neste sábado último. Vou deixar abaixo o último parágrafo, e só. O resto se esqueceu. Ficou de hoje só uma leitura amena do jornal: Jonas Brothers no Brasil, o anel da pureza, a contracultura indie que engana os moderninhos e que na verdade só é mais um braço da nossa tradicional cultura etc. Besteiras que se repetem de tempos em tempos, e a que forçamos um espanto apenas para reiterar a nossa condição humana. Uma indignação bem colocada é como um verniz no caráter.

O domingo vai acordando todo cotidiano com seu saquinho de pão. Me despeço do deck e saio sozinho. Ligeiramente feliz. Entro no carro e vou escutando "Os Miseráveis". A analogia parece me resumir um sorriso, e eu, cantarolando, passo um pouco mais que ligeiro pela felicidade.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Uma-coisa-puxa-outra

quarta-feira, 13 de maio de 2009 0
O conhecimento tem lá seus labirintos deliciosos, e não raro encontramos pontes que ligam algumas figuras mitológicas da nossa civilização.


Semana retrasada vi a peça "Zoológico de Vidro", de Tennesse Williams, com Cássia Kiss no elenco. Contornando a ocasião inóspita criada pelo tempo frio, que impele as pessoas a tossir como uma orquestra insalubre e deselegante, mergulhei absorto na montagem e no delicado texto. O final arrebatou-me de todo, e eu tive de sair do teatro ostentando uma cara de quem chorou, e ainda encarando olhares de quem viu a mesma coisa que eu e que, ao me ver enxugando o rosto, se fazia a pergunta: "Por que raios ele chorou?" Ou tosse, ou se entrega! Sensibilidade não se vende na esquina. É como pedir para ir ao banheiro logo depois de escutar "eu te amo".

Enfim, saí curioso sobre outras criações daquele autor, e foi que, ainda em conversa sob a esplanada do teatro, mencionaram um filme baseado em outra peça de Tennesse Williams. "Uma Rua Chamada Pecado", com Marlon Brando no papel de Stanley, um típico homem das cavernas todo sedutor em sua voz agressiva e dominadora. Esse ator não é mito por acaso. De apenas 1,76, sua corpulência física e indumentária é impressionante, e o vigor de sua beleza é de calar várias gerações de atores de quase 1,90. Fora a interpretação, que é aquela que sangra pelos olhos de tanta paixão posta em cena.


"Hey, baby, quer um trago?"


E assim uma peça me levou a um filme, e quantas outras combinações não são assim possíveis? Mesmo uma garotinha débil pode conhecer uma música clássica (e se encantar por ela) só porque esta foi referenciada num diálogo meloso do filme "Crepúsculo", que já a levara ao livro homônimo.

As pontes, afinal, podem tanto nos conduzir a lugares sagrados quanto a zonas áridas; mesmo neste caso último, pelo caminho da aléia ainda se podem colher algumas frutinhas melhores.

terça-feira, 12 de maio de 2009

De coração e esparadrapos

terça-feira, 12 de maio de 2009 0
Há um quê de mágico nos momentos derradeiros! Como supor que a velha senhora que padece na cama esconde dentro de seus pulmões, ora fracos, o sopro da menina que era, e que agora a encara no espelho com seu arzinho insolente e feliz, prendendo os cabelos loiros à fita azul, enquanto os ergue displicentemente, dando volta ao pescoço, para denunciar os ombros e a pele branca.

A menina, então, preparava-se para uma festa, e o que houve nela são desses mistérios inconfessáveis. A velha também se prepara para uma, talvez menos festa e mais mistérios, mas o que há de comum em ambas é que nas duas vão a mesma excitação, o mesmo frio na barriga, a mesma certeza de que, haja o que houver, seja atrás da outra porta ou daquele outro lado da vida, ela será sempre a mesma.

Não há sentido em se falar nas duas pontas da vida quando elas se dão definitivamente as mãos, como para aprisionar ad eternum seus segredos dentro do círculo mágico que constroem.

Uma é outra, e se alguns se decepcionam ao perceber que na senhora respeitável ainda persistem desejos bobos de menina, digo-lhes, senhores, que travessuras não têm idade, apenas os preconceitos. Não tenham medo de amar um pecado, senhores! Nem acreditem demais no que chamam reputação.

O que para tantos seria motivo de desamor, para mim é só razão de amar mais.

quarta-feira, 29 de abril de 2009

Culturas em Sampa

quarta-feira, 29 de abril de 2009 1

Era para eu ficar só domingo, acabei ficando até terça.
Domingo era dia de Falstaff na Sala São Paulo; ópera de Giuseppe Verdi, inspirada em "As Alegres Comadres de Windsor", de Shakespeare. Regência de Karabtchevsky. Vozes divinas cantando um dos textos mais engraçados do bardo inglês.

Então por que não ficar até segunda-feira? Seria então a noite da "Sinfonia Fantástica" e de "Lélio, ou o Retorno à Vida", de Berlioz, com a Orquestra de Champs-Elysées e coro da Osesp. Um ator argentino, fazendo-se francês, levou-me às lágrimas copiosas, tamanha era a paixão que colocava à boca.

Já estou sem roupa limpa, mas um ingresso me convida para terça-feira. Noite de pre-estreia do musical "A Bela e A Fera, Disney/Broadway. Tudo feito para arrebatar o coração mais sisudo Se é impressionável escutar falarem deste clássico, mais impressionante é estar na quarta fileira, de onde tudo é ainda mais mágico e monumental. Por que hei de negar que chorei ali?

E estes três dias não seriam tão impressionantes sem a companhia de pessoas tão especias e talentosíssimas que tive — e não exagero aqui um dedo — a honra de conhecer. Cada vez mais me convenço de que só a arte deita ao coração das pessoas que dela compartilham o bálsamo da estima e da amizade. Agradeço a Fernando, Manu, Silas e Vandson o privilégio de tê-los, a partir de agora, na minha resistente lembrança.

sábado, 25 de abril de 2009

Calígula

sábado, 25 de abril de 2009 1


Gostei da montagem de Calígula, com Thiago Lacerda, encenada ontem no Pedro II. Gosto especialmente desse tipo de teatro conceitual, de soluções cênicas extremamente originais, em que a imaginação e condescendência da plateia são parte do espetáculo. Particularmente, não me frusto se pegam um guarda-chuva e chamam-no de Roma. Para mim tá tudo bem, tá tudo ótimo, contanto que não chova no molhado.


Bem a linha, parece-me, do que Wagner Moura impôs a seu Hamlet. Mas como não vi essa montagem, cito um exemplo daqui mesmo de minha província. Semana passada assisti a uma montagem — bastante irregular, diga-se — de Brecht, chamada Alma Boa de Setsuan, em que a tabacaria de Chente, a alma boa do título, era representada por um carrinho de supermercado.


Tá tudo bem, tá tudo ótimo, contanto que ela não vá às compras.

quinta-feira, 23 de abril de 2009

quinta-feira, 23 de abril de 2009 2
Deixo cá trecho de um conto que parece ter nascido bom, embora eu não saiba bem como acabá-lo. E depois posto mais sobre outras coisas que me vêm distraindo e tornando esta vida menos entediante.


Este rapaz que vem descendo a rua passou toda a manhã procurando o que fazer. Como nada tivesse que o prendesse em casa, meteu umas calças bonitas e foi andar no shopping. Passeou meio entediado, fingindo interessar-se por alguma vitrine, alguma liquidação, mas o fato é que seu espírito ia como as escadas rolantes, de cima a baixo, mas voltando sempre para o ponto de onde partiram, sem muita novidade senão os pés que levam.

Sentia-se assim o pobre. Havia um tempo que já refletia sobre a repetição da vida, sem pegar-se da ideia de que era muito jovem para isso. Julgava-se velho, apesar da cara de criança imbecil e rosada. Às vezes, arrependia-se de ter lido tanto, e botava culpa aos livros. Encerrava Schopenhauer em um tribunal particular e, fingindo-se juiz do mundo, condenava-o por todos os crimes do seu pessimismo. Dos crimes do tédio, não via outro culpado senão Pessoa, e este, depois de chamado pelo promotor, seguia magro e contemplativo para o banco dos réus, ouvindo sua sentença sem modificar a expressão da serenidade.

Muitos outros foram julgados, mas não cabe aqui alongar as justiças de um cérebro enfastiado. Bem ou mal, o fato é que o nosso rapaz saiu do shopping e estava descendo aquela rua quando a história começou. Aqui se faz necessário dizer que ele já vinha com algo diferente na cabeça, nota-se pelo esboço de entusiasmo com que caminha e até saltita às vezes. Para explicar essa mudança extrema, voltemos uns dez minutos, e perdoem esse estilo meio ébrio de lá para cá, mas não é outro o estilo errante do rapaz.

Dez minutos voltados no relógio, estamos com ele ainda no shopping, à mesa de um café, ele brincando com o chantilly. Um folheto deixado aos clientes também lhe serviu de distração. Leu algumas piadas sem esboçar sorriso, viu a programação do teatro (o infeliz ainda espera ver ópera em Ribeirão!) e parou os olhos em um anúncio pequeno, mal diagramado, que reproduzia em claro-escuro a cena clássica de Hamlet indagando o pobre crânio. Tratava-se de um anúncio de escola de teatro.

Bem-aventurados aqueles que precisaram de tão pouco para imaginar nosso rapaz descendo a rua na alegria de encontrar o seu palco no mundo. Sim, é fato! Quem nunca teve esse desejo de libertar-se da vida e ser ator de todas elas? Foi essa a ideia que se espalhou no sangue do nosso jovem como um veneno imediato. Já tinha vinte e um anos e devia ser já, nem um segundo de espera, e ai se lhe metesse algum pensamento de que talvez fosse tarde demais para tão ardentes pretensões. Sim, pois o desejo do estrelato veio antes da paixão.

Chegou à porta da escola e, interrompendo o passo, quis eternizar o momento dizendo a si mesmo, à maneira das bruxas de Macbeth:

— Você será ator!

Entrou. Algumas crianças tumultuavam a entrada, outras saíam espremidas pela porta, mas aos poucos a saleta foi sendo desempestada. Enfim, nosso rapaz conseguiu dirigir-se à mocinha da recepção, a quem confidenciou seu interesse no curso, em tom quase solene, não sem a expectativa de que ela lhe percebesse nos olhos a chama de um talento adormecido e fizesse lá uma discreta comemoração.

Esses instantes da alma são realmente belos! No entanto, a dita mocinha já era senhora do cargo, e estava cansada do emprego. Achou um saco que lhe aparecesse naquele meio de tarde, numa sexta-feira, um candidato a matrícula. Sua contribuição à narrativa é importante na medida em que ao menos pergunta o nome ao rapaz, e é quando nesta história ele ganha um, meio tarde, admito: Luciano.

Já temos o nome, a idade e o estado de espírito. Vamos logo à intriga, pois a mocinha já o aborreceu muito com seu arzinho impaciente, e quase que Luciano escapa do sonho por causa dela, não fosse a entrada de outro personagem.

Barbaceno era de uma obesidade que assustava um menos avisado. Entrou equilibrando-se no próprio corpo, como um hipopótamo que, posto em pé, tentasse um passo de balé.
 
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