quarta-feira, 29 de abril de 2009

Culturas em Sampa

quarta-feira, 29 de abril de 2009 1

Era para eu ficar só domingo, acabei ficando até terça.
Domingo era dia de Falstaff na Sala São Paulo; ópera de Giuseppe Verdi, inspirada em "As Alegres Comadres de Windsor", de Shakespeare. Regência de Karabtchevsky. Vozes divinas cantando um dos textos mais engraçados do bardo inglês.

Então por que não ficar até segunda-feira? Seria então a noite da "Sinfonia Fantástica" e de "Lélio, ou o Retorno à Vida", de Berlioz, com a Orquestra de Champs-Elysées e coro da Osesp. Um ator argentino, fazendo-se francês, levou-me às lágrimas copiosas, tamanha era a paixão que colocava à boca.

Já estou sem roupa limpa, mas um ingresso me convida para terça-feira. Noite de pre-estreia do musical "A Bela e A Fera, Disney/Broadway. Tudo feito para arrebatar o coração mais sisudo Se é impressionável escutar falarem deste clássico, mais impressionante é estar na quarta fileira, de onde tudo é ainda mais mágico e monumental. Por que hei de negar que chorei ali?

E estes três dias não seriam tão impressionantes sem a companhia de pessoas tão especias e talentosíssimas que tive — e não exagero aqui um dedo — a honra de conhecer. Cada vez mais me convenço de que só a arte deita ao coração das pessoas que dela compartilham o bálsamo da estima e da amizade. Agradeço a Fernando, Manu, Silas e Vandson o privilégio de tê-los, a partir de agora, na minha resistente lembrança.

sábado, 25 de abril de 2009

Calígula

sábado, 25 de abril de 2009 1


Gostei da montagem de Calígula, com Thiago Lacerda, encenada ontem no Pedro II. Gosto especialmente desse tipo de teatro conceitual, de soluções cênicas extremamente originais, em que a imaginação e condescendência da plateia são parte do espetáculo. Particularmente, não me frusto se pegam um guarda-chuva e chamam-no de Roma. Para mim tá tudo bem, tá tudo ótimo, contanto que não chova no molhado.


Bem a linha, parece-me, do que Wagner Moura impôs a seu Hamlet. Mas como não vi essa montagem, cito um exemplo daqui mesmo de minha província. Semana passada assisti a uma montagem — bastante irregular, diga-se — de Brecht, chamada Alma Boa de Setsuan, em que a tabacaria de Chente, a alma boa do título, era representada por um carrinho de supermercado.


Tá tudo bem, tá tudo ótimo, contanto que ela não vá às compras.

quinta-feira, 23 de abril de 2009

quinta-feira, 23 de abril de 2009 2
Deixo cá trecho de um conto que parece ter nascido bom, embora eu não saiba bem como acabá-lo. E depois posto mais sobre outras coisas que me vêm distraindo e tornando esta vida menos entediante.


Este rapaz que vem descendo a rua passou toda a manhã procurando o que fazer. Como nada tivesse que o prendesse em casa, meteu umas calças bonitas e foi andar no shopping. Passeou meio entediado, fingindo interessar-se por alguma vitrine, alguma liquidação, mas o fato é que seu espírito ia como as escadas rolantes, de cima a baixo, mas voltando sempre para o ponto de onde partiram, sem muita novidade senão os pés que levam.

Sentia-se assim o pobre. Havia um tempo que já refletia sobre a repetição da vida, sem pegar-se da ideia de que era muito jovem para isso. Julgava-se velho, apesar da cara de criança imbecil e rosada. Às vezes, arrependia-se de ter lido tanto, e botava culpa aos livros. Encerrava Schopenhauer em um tribunal particular e, fingindo-se juiz do mundo, condenava-o por todos os crimes do seu pessimismo. Dos crimes do tédio, não via outro culpado senão Pessoa, e este, depois de chamado pelo promotor, seguia magro e contemplativo para o banco dos réus, ouvindo sua sentença sem modificar a expressão da serenidade.

Muitos outros foram julgados, mas não cabe aqui alongar as justiças de um cérebro enfastiado. Bem ou mal, o fato é que o nosso rapaz saiu do shopping e estava descendo aquela rua quando a história começou. Aqui se faz necessário dizer que ele já vinha com algo diferente na cabeça, nota-se pelo esboço de entusiasmo com que caminha e até saltita às vezes. Para explicar essa mudança extrema, voltemos uns dez minutos, e perdoem esse estilo meio ébrio de lá para cá, mas não é outro o estilo errante do rapaz.

Dez minutos voltados no relógio, estamos com ele ainda no shopping, à mesa de um café, ele brincando com o chantilly. Um folheto deixado aos clientes também lhe serviu de distração. Leu algumas piadas sem esboçar sorriso, viu a programação do teatro (o infeliz ainda espera ver ópera em Ribeirão!) e parou os olhos em um anúncio pequeno, mal diagramado, que reproduzia em claro-escuro a cena clássica de Hamlet indagando o pobre crânio. Tratava-se de um anúncio de escola de teatro.

Bem-aventurados aqueles que precisaram de tão pouco para imaginar nosso rapaz descendo a rua na alegria de encontrar o seu palco no mundo. Sim, é fato! Quem nunca teve esse desejo de libertar-se da vida e ser ator de todas elas? Foi essa a ideia que se espalhou no sangue do nosso jovem como um veneno imediato. Já tinha vinte e um anos e devia ser já, nem um segundo de espera, e ai se lhe metesse algum pensamento de que talvez fosse tarde demais para tão ardentes pretensões. Sim, pois o desejo do estrelato veio antes da paixão.

Chegou à porta da escola e, interrompendo o passo, quis eternizar o momento dizendo a si mesmo, à maneira das bruxas de Macbeth:

— Você será ator!

Entrou. Algumas crianças tumultuavam a entrada, outras saíam espremidas pela porta, mas aos poucos a saleta foi sendo desempestada. Enfim, nosso rapaz conseguiu dirigir-se à mocinha da recepção, a quem confidenciou seu interesse no curso, em tom quase solene, não sem a expectativa de que ela lhe percebesse nos olhos a chama de um talento adormecido e fizesse lá uma discreta comemoração.

Esses instantes da alma são realmente belos! No entanto, a dita mocinha já era senhora do cargo, e estava cansada do emprego. Achou um saco que lhe aparecesse naquele meio de tarde, numa sexta-feira, um candidato a matrícula. Sua contribuição à narrativa é importante na medida em que ao menos pergunta o nome ao rapaz, e é quando nesta história ele ganha um, meio tarde, admito: Luciano.

Já temos o nome, a idade e o estado de espírito. Vamos logo à intriga, pois a mocinha já o aborreceu muito com seu arzinho impaciente, e quase que Luciano escapa do sonho por causa dela, não fosse a entrada de outro personagem.

Barbaceno era de uma obesidade que assustava um menos avisado. Entrou equilibrando-se no próprio corpo, como um hipopótamo que, posto em pé, tentasse um passo de balé.
 
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