segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Lua como aquela

segunda-feira, 20 de setembro de 2010 2
Qualquer apaixonado dirá que não houve lua
como aquela.

Pois não há lua mais alta
e mais branca
que a lua que se desnuda,
em um beijo apaixonado.

E os novos amantes,
curiosos e descobertos pela luz da lua,
esticam em uníssono suas cabecinhas
para sonharem juntos da janela.

E ela então lhes devolve a nobreza,
e os corpos nus se arrepiam de candura,
pois afinal nunca jamais houve
uma lua mais lua como aquela.

domingo, 5 de setembro de 2010

Da arte do conselho

domingo, 5 de setembro de 2010 0


Dizem que sou bom conselheiro. E reconheço que meus conselhos são bons, embora o não sejam pelo motivo em que acreditam justificá-los.

Faço-me entender?

Sou bom conselheiro não por eu ser um conselheiro em si, mas por ver claramente o conselho no outro.

Ficou claro? Não?

À cabeceira da minha cama não se deitam livros de autoajuda. Tampouco me esforço para ser um guru confidente e conselheiro, embora saiba que muito da compreensão que hoje tenho da vida e das pessoas adormece serelepe nos clássicos que li, nos filmes a que assisti, no teatro e na música que me tocaram. Mas esse conhecimento em si não seria nada se caso não os constituísse meus olhos e meu cérebro, se não os aplicasse, mesmo que inconscientemente, ao longo desta jornada, tornando-os bússola e termômetro de todas as minhas escolhas, de toda a minha fé ou descrença.

Já estive no fundo do poço. E cheguei a pensar em decorar o fundo do poço. Mas saí dele e voltei à luz. A experiência, unida aos clássicos, também conta à maturidade e ao equilíbrio.

Pois bem, por que sou bom conselheiro?

As pessoas aproximam-se de outras pelos motivos errados. Admiram outras pelos motivos errados. Tornam-se obcecadas, gritam seus nomes, colam pôsteres nas paredes pelos motivos errados. Estas, se não refletem o bom senso na própria vida, tampouco atingirão o sensato na vida alheia, e sempre serão mesquinhas e ordinárias em seus conselhos.

Eu, por saber cortar quem não deve trilhar ao meu lado (e ser aparentemente cruel nessas tomadas), e aproximar-se de pessoas pelos melhores motivos delas, somente tenho o que dizer de melhor sobre elas, pois são crias da minha própria escolha, são a própria razão viva do que me fez querê-las, admirá-las e torcer por seu destino.

Não sou um bom conselheiro porque apenas sei dar bons conselhos. Sou bom conselheiro porque me amparo nas melhores pessoas.
E somente a elas sou sorriso.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Juventude Roubada

quarta-feira, 18 de agosto de 2010 0
Aprendi com aquele "nature boy" a não temer um sonho, a lançar-se de corpo e alma à correnteza do desafio, a não olhar para trás para não se entristecer com as pessoas que ficaram balançando a cabeça em sinal de reprovação, chamando-nos imbecis, irresponsáveis, fora de lugar, enquanto lamentamos não terem elas entendido que a vida é tão curta e urgente.

É por você, e por todo o ímpeto que você plantou em mim e me arrasta como um tufão até hoje, fazendo-me sentir tal um cavalo alado que de repente se vê livre dos arreios e parte através da campina verde para cumprir seu destino branco e selvagem, é por você, meu querido de tão longe, que não definhei nas graças do meu pensamento e virei pó de tudo o que não arrisquei.

Por você sou um retardado. E, sendo eu um sonhador retardatário, que mesmo ousando tem lá suas garantias de formiga, sei que irei socorrê-lo um dia por ter-se adiantado tanto em seu sonho de cigarra -- e por ser você tão jovem e besta, claro --, e serei como o teu bálsamo, como a tua alegria, como a tua própria vida ressurgida de outro e mesmo jardim, como o faz o sangue doado que corre o corpo de uma existência murcha para renascê-la enfim. Porque somos compatíveis, e você não me é estranho desde seu primeiro sorriso.

E terá de volta, assim, uma fração da juventude que lhe roubei (justa troca pelo tempo que adoro dizer que perdi com você).

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Sobre a ética do Mal

sexta-feira, 23 de julho de 2010 1

Não existe "alguém faltar com ética". Ética está em tudo. Tuas considerações do Bem e do Mal são o exercício pleno da tua ética. "Faltar com ética" nada mais é que chocar-se com outra diferente da tua, e autopresumidamente melhor que a tua, ou melhor que todas as outras. Ética, portanto, nunca falta. E, a meu ver, é profunda redundância querer discutir ética. É como se um vendedor batesse à tua porta e dissesse "Tenho aqui camisas, calças, blusas e também roupas", e tu te admirasses justamente neste último item.

Já senti vontade de matar pessoas e desossá-las tal um goleiro flamenguista. Minha ética, porém, é filha de um Estado, e recuo temerariamente ante seu poder punitivo. Quando dizem, pois, que alguém falta com ética, não é esta que falta, e sim a coragem dos que, vigiados por um Estado, não ousam exercer a plenitude de seus ódios e paixões, e por isso, recalcados, saem a dizer que tudo falta ao mundo -- amor, respeito, ética, decência --, quando no fundo sonhariam dar a carne do ex aos cães, se não se sentissem eternamente policiados por um Estado "severo" ou pela própria consciência da culpa e arrependimento.

A maldade humana é, sim, coisa muito ética. E é salutar que esta seja uma ética de poucos. Pois, sendo ela a ética de super-herói (poucos são corajosos a ponto de assumir, e suportar, a maldade dentro de si), nada lhe falta senão a humildade, e um mundo sem pessoas humildes seria particularmente odioso e inóspito a quem se habitou a elevar-se e flanar pela existência pisando delicadamente sobre várias cabecinhas ocas e assustadas.

A visão de cima dói, mas nada melhor que ser amortecido por um mundo que ignora a própria maldição. Seria desesperador viver entre tantos espíritos melancólicos do "sentir muito profundamente". Por isso me alegro, verdadeiramente me alegro, quando posso acompanhar, por detrás das cortinas semicerradas da janela de casa, a minha velha vizinha gorda a cantarolar uma música qualquer enquanto lava, tão alheia aos mistérios de tudo, a sua encardida calçada.

Ela é tão feliz, mas tão feliz, que minha maldade nunca jamais poderia penetrá-la. E mesmo se viessem a assustá-la dizendo que a água um dia será finda, ela afirmará que este dia não será dela (sem reconhecer o Mal nisso, claro), e ainda observará que o oceano é grande e azul (sem ocupar-se do Sal nisso, claro). E que não destruam a felicidade de minha vizinha!

Deixem-na cantarolar, desperdiçar recursos e ligar a TV para indignar-se com a falta de amor ao próximo, sempre ao assistir às notícias de um crime (oras!) passional. Carrego por ela a melancolia dos séculos, a assustadora verdade insuspeita, o grande terror pelo destino miserável de toda a sua família.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Notas de coração

segunda-feira, 19 de julho de 2010 0
Ao sentir o delicado aroma de um perfume borrifando-o na pele, não se deixe levar pelas primeiras moléculas. Estas são as notas de cabeça, ou notas de entrada, e evaporam-se em menos de três minutos. O verdadeiro aroma vem depois, nas notas de coração, as quais permanecem na pele de cinco a oito horas, e são, pois, a essência do perfume.

E como as metáforas também têm lá sua delicadeza cítrica, teu nariz será levado a torcer a quem professar que a primeira impressão é a que fica.

E saberá tratar-se de um ignorante de cheiros e coração...

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Sobre campos minados e estilhaços sentimentais

segunda-feira, 5 de julho de 2010 0


Proteja-se dos destroços quanto tudo vier aos ares. Porque não adianta o quanto você sinalize um campo minado, todos marcham em direção às bombas, confiando que o amor é capaz de desarmá-las todas. Explodir junto só porque você aprendeu que amigo é aquele que nunca abandona outro? Bobagem!


Se puderem, arrancam seus braços e pernas para compensar os membros amputados. Por isso, que cada um lide com as próprias bombas, pois, afinal, estas são metáforas das decisões que cada um toma. Se tais decisões do outro falam ao coração, junte-se à armada. Se não, debande-se o mais rápido que puder, a fim de não ser atingido pelos estilhaços.


Ou seja hipócrita e conviva, pois a grande farsa do mundo atual é não importar-se com nada, ou, melhor, não importar-se com as escolhas -- tão inalienáveis -- que definem o espírito e o destino de alguém. Conviver e não se envolver, aproveitando os frutos e evitando as podas. Apenas não se engane, contudo, ao acreditar que as escolhas da pessoa ao lado não irão definir você.


Elas dizem mais sobre quem se silencia do que sobre quem cegamente as leva a cabo.

quarta-feira, 30 de junho de 2010

Allen Ad Eternum

quarta-feira, 30 de junho de 2010 0



Woody Allen já está na estrada há mais de 40 anos e, apesar de seus tropeços, é tocante como ainda não mostra sinais de que vai parar -- ou mesmo diminuir o ritmo de sua produção --, e como ainda pode desfilar momentos de genialidade muito acima da média dos jovens diretores de nosso tempo.

Grande presença em Cannes este ano, ele há muito tornou-se um tipo de caricatura de si mesmo, franzino e de óculos de aros grossos, sempre com aquele ar melancólico de um senil aparentemente inofensivo. Mas que não se enganem! Ele é uma metralhadora implacável. Perguntado, na coletiva de imprensa, sobre o que ele pensava sobre a morte (jornalistas são mesmo um prato cheio para o humor, não?), ele foi fiel ao estilo que o consagrou em vida:

A morte? Sou totalmente contra.

Neste novo filme -- Whatever works --, cujo roteiro (dele próprio!) data originalmente de 1977, ele também é preciso ao optar por uma direção discreta. Opção que passaria por natural, caso eu não tivesse acabado de sair de uma sessão de "cinema emo" (Os famosos e os duendes da morte), filme brasileiro de "sensações" que pareceu ter nascido apenas para provar o talento do debutante diretor em mexer com filtros, granulados e silêncio. E este último elemento deveria ter sido mais explorado, visto que o filme não tinha mesmo muito a dizer. Ser sensível, para muitos, é apenas sugerir que, em algum ponto d'alma, existe uma profunda inteligência e compreensão de tudo e de todos, quando na verdade é apenas um desalento fruto da própria inércia existencial.

Woody Allen, ao contrário, não apenas sugere, como disseca graciosamente, e com verborragia muitas vezes excessiva, essa miséria humana encantadora. E nem por isso é de todo pessimista. Para ele, sempre há uma forma de libertação (ele é totalmente contra a morte, ok?), e é isso justamente em que consiste sua comédia: mesmo marchando rumo à autodescoberta e, por consequência, à sua libertação, o ser humano é um perfeito estúpido, sempre amarrado à "sorte" de um destino que não prima pela justiça ou coerência.

Portanto, antes de apreciar emos entediados masturbando-se no chuveiro, ou pegar-se chorando pela sensibilidade oca e poética de um Universo cruel e safadinho, busque compreender que tudo faz parte de uma grande farsa idealizada por homens tão estúpidos quanto você, mas que tiveram (ou não?) muito mais "sorte".

Como diz o protagonista rabugento do filme, ao derrubar a quarta parede e apontar o dedo para a plateia, todos ali -- e olha que havia muita gente "cabeça", viu?! -- tinham acabado de comprar ingressos para que algum produtor de Hollywood pudesse aumentar sua piscina.

Que ele construa um parque aquático no quintal, se ao menos me devolver um novo filme de Woody Allen.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Sobre fé e ignorância

segunda-feira, 21 de junho de 2010 0
Alguns nascem com uma confiança natural no mundo. Minha mãe, portanto, não achou outra coisa senão alegria quando soube que aquele adstringente comprado na farmácia saíra com três reais de desconto.

O filho, este que voz escreve, no mesmo instante pegou da sacolinha e, observando a traseira do produto, foi atentar certeiramente na data de validade deste -- janeiro de 2010 --, como já soubesse, instintivamente ou de lições dolorosas, o motivo por que desvalorizam tudo neste mundo e nesta vida: passou-se o seu tempo, oras!

Não discorro sobre esse juízo, que nos já soa tão natural e definitivo, mas digo que a mãe, entristecida e colérica, quis logo reclamar seus direitos, enquanto me detive um passo atrás, deixando-me pegar pelo próprio gênio, cuja melancolia -- percebi -- não mais se deixa levar por "pequenas cortesias", mas antes procura nelas as intenções piores. E por que enxergo algo de tão trágico nisso? Algo de tão triste? Por que não apenas reproduzir a ignorância de minha mãe e darmos mão à felicidade?

O produto foi trocado. A mãe, ainda mais alegre por ter praticado um direito do consumidor, não reparou que o filho ao lado se angustiava em uma busca muito menos secular, mas não menos dilacerante: a validade de sua própria fé.

www.youtube.com/watch?v=rpbk8GYvqqc&feature=player_embedded#!

domingo, 6 de junho de 2010

No tempo que for...

domingo, 6 de junho de 2010 0
Dizer muito é dizer com os espaços em branco.

É fazer notar tua presença pela falta que tu fazes.

Tua lembrança pelo esquecimento dos que vieram depois de ti.

É fazer notar teu verso pela ausência brusca de rima.

Tua música pela falta de ritmo,

pelo jeito desastrado dos passos,

pela eternidade tocante das notas improvisadas.


Tenta convidar o Amor a sentar-se ao piano
e joga à sua frente uma partitura qualquer,
de um compositor qualquer.
O Amor, bobo nem nada, estalaria os dedos,
fecharia os olhos à plateia
e -- alheio à sonata dos séculos --
tocaria somente os corações...

Os conservadores o vaiarão por tamanho desrespeito
os sem-coração dirão tratar-se de um aventurado sem propósito
e os eternamente apaixonados entreolhar-se-ão suspirantes e calados
como houvessem prestigiado a manifestação repentina
de um amor acontecendo
em uma linguagem secreta.

Dizer muito é dizer para poucos.
Pois somente poucos,
dentro de si,
realizam o dito.

No tempo que for...

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Ma Mémoire Sale

quinta-feira, 20 de maio de 2010 0
http://www.youtube.com/watch?v=2Ah8nDDf_TI

Lave
Ma mémoire sale dans son fleuve de boue
Du bout de ta langue nettoie moi partout
Et ne laisse pas la moindre trace
De tout ce qui me lie et qui me lasse
Hélas
Chasse
Traque-la en moi, ce n'est qu'en moi qu'elle vit
Et lorsque tu la tiendras au bout de ton fusil
N'écoute pas si elle t'implore
Tu sais qu'elle doit mourir d'une deuxième mort
Alors... tue-la
Pleure
Je l'ai fait avant toi et ça ne sert à rien
A quoi bon les sanglots, inonder les coussins
J'ai essayé, j'ai essayé
Mais j'ai le coeur sec et les yeux gonflés
Mais j'ai le coeur sec et les yeux gonflés
Alors brêle
Brêle quand tu t'enlises dans mon grand lit de glace
Mon lit comme une banquise qui fond quand tu m'enlaces
Plus rien n'est triste, plus rien n'est grave
Si j'ai ton corps comme un torrent de lave
Ma mémoire sale dans son fleuve de boue
Lave
Lave
Ma mémoire sa dans son fleuve de boue
Lave (lave)

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Maldito

quinta-feira, 13 de maio de 2010 1
Se eu pudesse perseguir em pensamento somente para reivindicar o pedacinho que me foi arrancado, pedacinho sem o qual nunca me compreendi completo de novo, ou suficientemente cheio de verdade.

De nada adianta eu me consolar na certeza de que levarão também o seu pedacinho, sem o qual também se sentirá incompleto e impreciso, e quando você voltará a ser mais parecido comigo do que jamais pensou, mais próximo do que jamais foi, sem contudo admitir jamais isso.

Sim, porque, para você, eu sou mau. Profundamente mau.

Se pudesse, além do que posso, conservaria tua juventude num pote de geleia. E não o faria por amor aos morangos frescos e silvestres.

Seria apenas pelo fetiche saboroso de te condenar à doçura quando tudo já lhe parecer amargo e hediondo, o que se dará depois de ter-se lambuzado inteiro.

Você dirá que eu sou mau. Profundamente mau.

Mas só compreenderá a maldade completa quando, arrastado pelo inverno rigoroso, sentir secar violentamente a tua primeira primavera, e quando tiver de colher as minhas flores malditas para enfeitar tua paisagem de gelo.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Com o tempo você aprende a diferença...

quarta-feira, 14 de abril de 2010 0

Entre envelhecer com graça e virar uma pedra.

segunda-feira, 15 de março de 2010

Sobre as flores e o concreto

segunda-feira, 15 de março de 2010 0


Facilitaria, sim, se eu fosse mais amável. Eu seria igual a tantos, mas facilitaria o amor de alguns. Sendo pouco amável, não espero amor, pois amor não pode vir da hostilidade ou do desapego. Espero resistência, inquietude, espírito raro. Ou não espero nada. Ou espero que não esperem de mim.

Não tento mais penetrar o idioma banal com que se comunica a gente ordinária, com seus códigos próprios de conduta patética e julgamentos precipitados -- sempre ancorados em premissas hipócritas e moralistas --, com suas bajulações publicamente constrangedoras, com sua necessidade de juntar-se em bandos para suportar a existência particularmente vazia e destituída de significados maiores e subjetivos. A estes a música não chega, a poesia não assombra, o silêncio não diz nada além da urgência do querer falar. A Beleza, para eles, não é propriamente um estado, mas uma aparência.

Também dispenso os fracos e dramáticos. Não por serem piores, mas porque minha natureza é notadamente avessa a dramas frágeis e birras noturnas. Neles nem gosto muito de pensar, para não concluir que, escapando de uma banalidade, incorreram em outra tão mais banal que a primeira. Dramas exagerados desmerecem o sentimento que eles se propõem a retratar, tal qual uma atriz que chora e esperneia na cena em que lhe comunicam a morte de seu filho, enquanto uma outra, ao receber a mesma notícia, reproduz nos olhos fixos e calados não somente a dor devastadora da perda, mas toda a vida do filho que perdeu.

Facilitaria, sim, se eu fosse mais amável. Teria companhia sempre, teria cortesias sempre, teria sempre em quem me apoiar -- e um amor sempre disponível no celular. O infortúnio de ser mais amável, porém, é que talvez eu me perdesse de mim mesmo, visto que minha natureza é outra e mais arisca, e, em meio a tantos perdidos afáveis, deixasse de compreender o amor que jamais precisou se ajustar.

segunda-feira, 1 de março de 2010

A sabedoria de Cândida

segunda-feira, 1 de março de 2010 0

Uma escolha se coloca a Cândida no clímax do texto que leva seu nome, escrito pelo irlandês Bernard Shaw e encenado ontem no Theatro Pedro II.

Ao seu marido, um clérigo conservador famoso por suas pregações, opõe-se um poeta "efeminado", romântico e agudo na observação da alma humana. Este jovem, apaixonado por Cândida, supõe entendê-la melhor que o marido, fato que o fortalece a desafiá-lo. Ambos se torturam, e o desgaste imputa-lhes a razão. Cândida é quem deverá escolher.

Percebendo-se em um leilão, Cândida -- que é menos cândida que o Cândido de Voltaire, para quem "tudo vai da melhor forma neste mundo" -- deseja saber qual o lance de cada um dos pretendentes.

O marido chora, mas oferece à mulher seu talento de orador para sustentá-la, seu trabalho para garantir-lhe segurança e conforto e seu prestígio social para sua dignidade.

O poeta não chora, mas oferece a Cândida o seu mais alto tesouro:

"A franqueza. A desolação. A carência do meu coração."

Entre o amor de um marido eficiente e o de um poeta sensível, Cândida decide-se, em suas palavras, "pelo mais fraco dos dois".

O marido cai em prantos. É ele o escolhido.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Em busca do tempo perdido

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010 0
Alguns "cultos" adoram citações. Elegem um escritor aforista, que pode ser Oscar Wilde, ou Clarice Lispector, ou, mais recentemente, Caio Fernando Abreu, e vivem a reproduzir seus trechos curtos de fácil assimilação e notadamente impactantes. Os tempos atuais combinam com essa coisa brevíssima e urgente.

O fato é que poucos encaram os "monumentos". Estou para conhecer quem tenha lido Os miseráveis, de Victor Hugo (não, não vale ter visto o musical), ou mesmo Ulisses, de James Joyce. Nesses casos, a leitura é uma vertigem. Não se senta de frente ao computador por algumas horas para colher frases de efeito. Tais livros, em suma, se apropriam, por alguns meses, da própria alma do leitor, forçando-o a uma evolução maiêutica, um parto prematuro cuja experiência não é, necessariamente, prazerosa do início ao fim. De qualquer modo, eu não gosto de quem eu era antes da leitura dos meus principais monumentos. E isso basta.

Por isso acabo de adquirir um outro. Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, promete ser uma jornada fascinante em busca do Tempo e da Memória, dos amores que se esquecem, das saudades que adormecem, das recordações enterradas em uma sei lá inconsciência necessária para que possamos seguir em frente, mas que se nos despertam involuntárias pelo sabor de um biscoito, pelo aroma de um perfume, transbordando-nos, subitamente, de uma alegria com sabor de eternidade.

Os monumentos não nos dão respostas a nada. Eles apenas roubam nossa inocência, nossa juventude, e nos abandonam menos sozinhos do que antes; sem respostas, mas com as dúvidas certas. Aliás, uma maneira mui elegante de se levar a vida.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Carpe diem

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010 1


Há dias em que tudo carece de inspiração. Então você inventa de comprar uma roupa de que não precisa, lembrar de um ex que lhe não faz falta, planejar seu futuro para os próximos mil anos.

Por mais que se apregoe por aí o epicurismo do carpe diem, convenhamos que seus sectários são pessoas, em suma, de bastante pouco talento, principalmente em perceber como suas ações do hoje -- ou o adiamento delas -- afetarão completamente sua vida amanhã, por mais incerta que esta se lhe apresente. Carpe diem virou desculpa para adiarmos nosso futuro.

Por isso também tenho a ligeira impressão de que tais pessoas estão presas num dia qualquer, e sempre no mesmo dia, ávidas por curti-lo e nunca sinalizando para algo que pareça melhorá-las, evoluí-las. Vejo os mesmos amigos de antes envolvendo-se com as mesmas pessoas ruins de antes, sofrendo as mesmas dores de antes. Mudam-se as peças, mas o jogo é o mesmo, e eu fico me perguntando o porquê de não terem aprendido com o passado. E eis que tudo é porque não há, justamente, passado nem futuro, há apenas um dia infinito que não se pensa.

E, de tanto aproveitar o dia, a noite ficou sem casa.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Sobre o cinismo

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010 0
Diógenes de Sínope começou como um teimoso. Queria porque queria ser discípulo de Antístenes, mas este não queria discípulos. A insistência, porém, venceu a fortaleza, e o jovem aprendiz acabou sendo acolhido pelo mestre.

O rapaz cresceu e fundou o cinismo, que acabou servindo como uma luva para as agonias de uma Atenas subjugada por Alexandre Magno, o Grande, o Conquistador.

Diógenes levou uma vida simples, vestia-se maltrapilho, e foi com ele que Chaves aprendeu que se podia muito bem viver dentro de um barril. Assim era Diógenes, alheio às convenções sociais e pronto mesmo para interromper uma figura tão notória como já se fazia a de Platão, em pleno discurso enfarado de especulações metafísicas, somente para questioná-lo da ausência do homem entre tantos pensamentos sublimes.

Mas foram com Alexandre Magno os embates que melhor traduzem o espírito do cinismo, escola tão em voga nos dias de hoje. Contam as narrativas da era helenista que certa vez Diógenes estava tomando sol no Craneu quando Alexandre se aproximou. O Conquistador, que já conhecia a influência daquele homem entre os gregos, disse-lhe: "Pede-me o que quiseres." Diógenes, o Cínico, simplesmente respondeu: "Se me queres fazer algo, sai da frente do meu Sol."

Engana-se quem imagina que Alexandre ficou irado com a resposta. Antes, ela o impressionou muito. Ouvindo seus oficiais zombarem da atitude daquele homem, o Grande retorquiu: "Se eu não fosse Alexandre, queria ser Diógenes."

Diógenes representa hoje o não curvar-se para o mundano, para as riquezas, para os poderosos. Mais: deu mostras de como sobreviver em mundo de tanta hipocrisia, de tantas falsas promessas, e de como depender apenas do umbigo para alcançar a virtude. Esta mesma que só necessita do Sol para florescer livre e maravilhosa.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Do ponto-e-vírgula

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010 0

(...) o presidente Sarkozy, faz alguns meses, havia instruído todo o seu ministério a reabilitar o uso deste sinal nos documentos administrativos, tendo fixado, por página, o mínimo de três ponto-e-vírgulas (mas cá para nós, que plural mais “singular”!). Tal medida teria como objetivo combater a tirania da frase curta, curtíssima — verdadeira praga que assola o estilo moderno —, fazendo voltar os elegantes e articulados períodos que sempre caracterizaram a sintaxe da língua em que brilharam Bossuet, Voltaire e Flaubert.

MORENO, Cláudio. Sua Língua.

O presidente da França é baixinho. É natural que se ocupe em esticar as coisas.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Sobre o amor e a rosa

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010 0
Viaje sozinho. Ou viaje com quem você ama. Não divida gastos com quem não pretende dividir o afeto. E isso é ainda mais verdade quando se juntam pessoas que não têm nada a ver umas com as outras. Sim, a pessoa que dorme ao seu lado pode habitar um mundo completamente outro do seu. Então não se desgaste lançando cometas para o céu na esperança de que o descubram no espaço. Talvez você tenha nascido mesmo é para habitar um mundo de Pequeno Príncipe. Não há nada de errado nisso. Apenas cultive a rosa.

Li uma vez na Folha Mais! um artigo cuja autora confessou ter terminado um relacionamento quando percebeu, no cinema, quando assistia a As Pontes de Madison com seu namorado, que este não compreendera por que ela se emocionou tanto na cena em que Franscesca (Meryl Streep) renuncia ao amor do fotógrafo vivido por Clint Eastwood para continuar com a sua vida pacata de dona de casa, resignada ao lado de um marido que ela não amava e de filhos que não a viam como uma mulher repleta de sonhos e mistérios.

Pois bem. Ela, naquele instante, teve a prova definitiva de que seu namorado não habitava o mesmo mundo, e que ela não devia ser obrigada a viver tão intimamente com alguém que não conseguiria jamais compartilhar da mesma dor, da mesma tristeza. Lembra-me uma frase do filme Closer: "Amo tudo o que dói em você." E são assim os amores que cultivam a rosa.

A vida é sobre isso. É tudo sobre o amor e da nossa capacidade de se afetar por pessoas que parecem significá-lo mais para nós, ou de nos afastarmos daquilo que nos não afeta de modo algum. Colhida a primeira experiência, a novidade precisa entrar logo no coração, ou seguirá o rumo das coisas esquecidas. Que são muitas nesta vida.

***

Cena do filme Noites Brancas, dirigido por Visconti, com Marcelo Mastroianni no elenco. Baseado no conto homônino do russo Dostoiévski, narra uma história delicada em que o amor se coloca como uma escolha que, por mais incoerente e irracional que pareça a princípio, somente faz sentido quando determinada pelo elemento que não se pode pensar.

Apenas ser.

 
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