segunda-feira, 15 de março de 2010

Sobre as flores e o concreto

segunda-feira, 15 de março de 2010 0


Facilitaria, sim, se eu fosse mais amável. Eu seria igual a tantos, mas facilitaria o amor de alguns. Sendo pouco amável, não espero amor, pois amor não pode vir da hostilidade ou do desapego. Espero resistência, inquietude, espírito raro. Ou não espero nada. Ou espero que não esperem de mim.

Não tento mais penetrar o idioma banal com que se comunica a gente ordinária, com seus códigos próprios de conduta patética e julgamentos precipitados -- sempre ancorados em premissas hipócritas e moralistas --, com suas bajulações publicamente constrangedoras, com sua necessidade de juntar-se em bandos para suportar a existência particularmente vazia e destituída de significados maiores e subjetivos. A estes a música não chega, a poesia não assombra, o silêncio não diz nada além da urgência do querer falar. A Beleza, para eles, não é propriamente um estado, mas uma aparência.

Também dispenso os fracos e dramáticos. Não por serem piores, mas porque minha natureza é notadamente avessa a dramas frágeis e birras noturnas. Neles nem gosto muito de pensar, para não concluir que, escapando de uma banalidade, incorreram em outra tão mais banal que a primeira. Dramas exagerados desmerecem o sentimento que eles se propõem a retratar, tal qual uma atriz que chora e esperneia na cena em que lhe comunicam a morte de seu filho, enquanto uma outra, ao receber a mesma notícia, reproduz nos olhos fixos e calados não somente a dor devastadora da perda, mas toda a vida do filho que perdeu.

Facilitaria, sim, se eu fosse mais amável. Teria companhia sempre, teria cortesias sempre, teria sempre em quem me apoiar -- e um amor sempre disponível no celular. O infortúnio de ser mais amável, porém, é que talvez eu me perdesse de mim mesmo, visto que minha natureza é outra e mais arisca, e, em meio a tantos perdidos afáveis, deixasse de compreender o amor que jamais precisou se ajustar.

segunda-feira, 1 de março de 2010

A sabedoria de Cândida

segunda-feira, 1 de março de 2010 0

Uma escolha se coloca a Cândida no clímax do texto que leva seu nome, escrito pelo irlandês Bernard Shaw e encenado ontem no Theatro Pedro II.

Ao seu marido, um clérigo conservador famoso por suas pregações, opõe-se um poeta "efeminado", romântico e agudo na observação da alma humana. Este jovem, apaixonado por Cândida, supõe entendê-la melhor que o marido, fato que o fortalece a desafiá-lo. Ambos se torturam, e o desgaste imputa-lhes a razão. Cândida é quem deverá escolher.

Percebendo-se em um leilão, Cândida -- que é menos cândida que o Cândido de Voltaire, para quem "tudo vai da melhor forma neste mundo" -- deseja saber qual o lance de cada um dos pretendentes.

O marido chora, mas oferece à mulher seu talento de orador para sustentá-la, seu trabalho para garantir-lhe segurança e conforto e seu prestígio social para sua dignidade.

O poeta não chora, mas oferece a Cândida o seu mais alto tesouro:

"A franqueza. A desolação. A carência do meu coração."

Entre o amor de um marido eficiente e o de um poeta sensível, Cândida decide-se, em suas palavras, "pelo mais fraco dos dois".

O marido cai em prantos. É ele o escolhido.
 
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