quinta-feira, 23 de abril de 2009

quinta-feira, 23 de abril de 2009
Deixo cá trecho de um conto que parece ter nascido bom, embora eu não saiba bem como acabá-lo. E depois posto mais sobre outras coisas que me vêm distraindo e tornando esta vida menos entediante.


Este rapaz que vem descendo a rua passou toda a manhã procurando o que fazer. Como nada tivesse que o prendesse em casa, meteu umas calças bonitas e foi andar no shopping. Passeou meio entediado, fingindo interessar-se por alguma vitrine, alguma liquidação, mas o fato é que seu espírito ia como as escadas rolantes, de cima a baixo, mas voltando sempre para o ponto de onde partiram, sem muita novidade senão os pés que levam.

Sentia-se assim o pobre. Havia um tempo que já refletia sobre a repetição da vida, sem pegar-se da ideia de que era muito jovem para isso. Julgava-se velho, apesar da cara de criança imbecil e rosada. Às vezes, arrependia-se de ter lido tanto, e botava culpa aos livros. Encerrava Schopenhauer em um tribunal particular e, fingindo-se juiz do mundo, condenava-o por todos os crimes do seu pessimismo. Dos crimes do tédio, não via outro culpado senão Pessoa, e este, depois de chamado pelo promotor, seguia magro e contemplativo para o banco dos réus, ouvindo sua sentença sem modificar a expressão da serenidade.

Muitos outros foram julgados, mas não cabe aqui alongar as justiças de um cérebro enfastiado. Bem ou mal, o fato é que o nosso rapaz saiu do shopping e estava descendo aquela rua quando a história começou. Aqui se faz necessário dizer que ele já vinha com algo diferente na cabeça, nota-se pelo esboço de entusiasmo com que caminha e até saltita às vezes. Para explicar essa mudança extrema, voltemos uns dez minutos, e perdoem esse estilo meio ébrio de lá para cá, mas não é outro o estilo errante do rapaz.

Dez minutos voltados no relógio, estamos com ele ainda no shopping, à mesa de um café, ele brincando com o chantilly. Um folheto deixado aos clientes também lhe serviu de distração. Leu algumas piadas sem esboçar sorriso, viu a programação do teatro (o infeliz ainda espera ver ópera em Ribeirão!) e parou os olhos em um anúncio pequeno, mal diagramado, que reproduzia em claro-escuro a cena clássica de Hamlet indagando o pobre crânio. Tratava-se de um anúncio de escola de teatro.

Bem-aventurados aqueles que precisaram de tão pouco para imaginar nosso rapaz descendo a rua na alegria de encontrar o seu palco no mundo. Sim, é fato! Quem nunca teve esse desejo de libertar-se da vida e ser ator de todas elas? Foi essa a ideia que se espalhou no sangue do nosso jovem como um veneno imediato. Já tinha vinte e um anos e devia ser já, nem um segundo de espera, e ai se lhe metesse algum pensamento de que talvez fosse tarde demais para tão ardentes pretensões. Sim, pois o desejo do estrelato veio antes da paixão.

Chegou à porta da escola e, interrompendo o passo, quis eternizar o momento dizendo a si mesmo, à maneira das bruxas de Macbeth:

— Você será ator!

Entrou. Algumas crianças tumultuavam a entrada, outras saíam espremidas pela porta, mas aos poucos a saleta foi sendo desempestada. Enfim, nosso rapaz conseguiu dirigir-se à mocinha da recepção, a quem confidenciou seu interesse no curso, em tom quase solene, não sem a expectativa de que ela lhe percebesse nos olhos a chama de um talento adormecido e fizesse lá uma discreta comemoração.

Esses instantes da alma são realmente belos! No entanto, a dita mocinha já era senhora do cargo, e estava cansada do emprego. Achou um saco que lhe aparecesse naquele meio de tarde, numa sexta-feira, um candidato a matrícula. Sua contribuição à narrativa é importante na medida em que ao menos pergunta o nome ao rapaz, e é quando nesta história ele ganha um, meio tarde, admito: Luciano.

Já temos o nome, a idade e o estado de espírito. Vamos logo à intriga, pois a mocinha já o aborreceu muito com seu arzinho impaciente, e quase que Luciano escapa do sonho por causa dela, não fosse a entrada de outro personagem.

Barbaceno era de uma obesidade que assustava um menos avisado. Entrou equilibrando-se no próprio corpo, como um hipopótamo que, posto em pé, tentasse um passo de balé.

2 comentários:

  1. Hahaha...
    É, acho que já vi esse panfleto em algum lugar do passado...
    Barbaceno? Hahaha...

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  2. Hahaha... é, acho que já vi esse panfleto em algum lugar do passado...
    Barbaceno? Hahaha...

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