terça-feira, 23 de junho de 2009

Sobre meninos e lobos

terça-feira, 23 de junho de 2009 0
Eles são os fracos.

Continuamos aqui, erguidos, porque sabemos o que fazer. E fazemos

Seremos, inevitavelmente, consumidos pelas nossas paixões e renegados pela gente que não compartilhava delas; mas, mesmo aí, será tarde demais, porque já teremos cavalgado as entranhas do mundo a disseminar a nossa volúpia, o nosso ímpeto, a nossa glória inconfundível e maravilhosa, a encravar em poucos e seletos corações a consciência inefável de tudo aquilo que fizemos existir, vibrar, rebentar de dentro para fora como uma supernova improvável cuspida de um buraco negro impossível.

Nós somos os fortes. Não teremos a honra de enterrar nossos pais, mas teremos feito da terra, este elemento que nos absorve tanto na vida quanto na morte, uma mãe menos constrangida de receber os corpos de toda a gente, boa ou má, que amamos durante esta faísca que chamamos geração.

Nós somos os fortes. E isso porque não existe, para nós, grandes malditos, outro destino possível.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Sereias

quarta-feira, 17 de junho de 2009 0


Folgo em pensar que um terço da vida já me tenha passado. Os cientistas andam querendo esticar o denominador, buscando em seus japoneses distantes de ilhas longínquas o segredo da longevidade. Mas é algo que não quero por pura preguiça de refazer as contas e abrir mão do romantismo de crer que da vida já comi um pedaço de três.

Um pedaço já se foi, tendo eu demorado para perceber que não se come com as mãos. Agora, versado na mesa e nos costumes, deliciosamente adio os talheres para contemplar a fartura, a beleza, assim somente com olhos, como a gracejar da vida antes de metê-la dentro, convulsiva, digestiva, vinho e pão.

Assim como se contemplam os amores antes de metê-los ao coração. Mas antes mesmo de chegarem a ele usam estes o mesmo nome. Fato! O nome que virão ter dentro já o têm fora, e por isso a tortura vem na mesma força, porque tudo é amor. Eu, ainda mais torto, me detenho no excesso romântico de não amar direito quem se deve, e amar demais quem não se pode, ou não se deixa.

Desde pequeno noto esse desvio de conduta. Uma criança calada, de olhar oblíquo, a espezinhar os amores que se lhe sentavam ao lado para dividir o lanche, enquanto torcia o pescoço para adorar os que indolentemente balançavam suas lancheiras doutro lado do pátio, acenando perigosos como as sereias de Ulisses.

Cresci, e já lhes adiantei ter andado um terço, mas pouco mudou senão o aperfeiçoamento da dissimulação. Atado ao mastro, ouço as delícias do mar, as baladas, as drogas da felicidade, mas já não me jogo em direção às pedras onde as ninfas tremeluzem suas caudas úmidas e espumantes.

Sou mais forte, mais embrutecido. Mas continuo a ser um desses grandes malditos de ouvidos abertos a tudo, com o coração a palpitar ao som da melodia doce de um mundo esquecido.

Esqueceu-se. Como às vezes dois corações se esquecem um do outro, um afogado na noite, outro vagando sem rumo. Ambos sem compreender por que razão, no dia seguinte, quando a luz penetra as alcovas do espírito, batem tão desesperadamente na vontade de trocarem entre eles uma simples palavra.

E essa vontade é tudo; diz tanto com tão pouco. Mas nos é difícil compreender isso. Já são tantas as sereias, e tantos os cantos insindiosos, que não raro temos, apaixonados um do outro, dois Ulisses presos ao mastro. E o amor continua sendo mais misterioso que o próprio oceano.

sábado, 6 de junho de 2009

Rastros

sábado, 6 de junho de 2009 1
Meus olhos cravaram nele uma espécie de marcação, quer luminosa, quer aromática, que o faria desenhar um rastro durante toda a noite à minha perseguição.

Enfiei os olhos na nuca e o vi passar detrás. Segui a trilha e, vendo-o parado, me postei ao lado, como quem divide a mesma linha do horizonte colando as estrelas à sorte de qualquer abotoadura.

Como ouso esquecer o que disse a ele? Só me lembra o sorriso acanhado, o gesto renitente, os olhos querendo medir. Com o tempo, porém, confiou ao íntimo que gostaria de mim, atenuou o ímpeto e aceitou a companhia, desvencilhando-se vez ou outra de um aperto, ou de um rosto mais colado.

Foi toda a noite a estátua da inocência. Eu, há tempo libertino, me aborreci com a demora, com a procrastinação, e desanuviei no ar, com a mão impaciente, a mínima suspeita de que tivesse aquele encontro traços do autor maior, que dita antes ao coração que aos lábios sequiosos.

Lascivo contrariado, despedi-me abrupto, pedindo para que não me procurasse mais, pois por duas vezes, depois de perdidos um do outro por iniciativa minha, ele inventara de me achar de novo, assim casualmente, o que — e não é difícil presumirem — me acendeu novamente, e por duas vezes, as intenções.

Resolvido a apagá-las de vez, saí sozinho, deixando, agora eu, um rastro de fúria que não se podia seguir senão pelo olhar dele, de anjo paralisado pela contemplação do primeiro voo do diabo.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Vícios

segunda-feira, 1 de junho de 2009 3
Seríamos nós todos libertinos das ruas, vagando noturnos em busca de um prazer indecifrável? Os fins de semana parecem rituais. Sair é quase uma obrigação. E só se mantém longe do vício quem nunca o experimentou. Aliás, ninguém menos digno de confiança que um homem sem vício algum.

Se a arte vivesse a par com a virtude, não teria havido, e não haveria ainda, tantos poetas bêbados, viciados, com alguma compulsão sexual. O conceito de poeta, hoje, e para mim somente, não se restringe apenas aos boêmios esfarrapados que erram pela vida poeticamente sem dinheiro, como também aos homens retos de qualquer profissão liberal que tiram de seu cotidiano alguma flor eterna, botando-a em uma estufa iluminada na qual floresce aos olhos da criação.

Esse parágrafo, aliás, é digno de figurar entre os ilustres exemplares da estética do exagero, mas cá entre nós que o mundo mesmo triunfa quando podemos deitar nossa mente na contemplação de uma ideia simples e exageradamente ornamentada.

(E este é um vício que tenho, de interromper uma tese para o desfile de outra, e depois querer conjugá-las ambas, sendo embora rivais, ou mesmo tão díspares que não podem discursar juntas numa mesma cátedra.)

Meu vício, portanto, é assimilar coisas demais, querer um tanto de tudo ao mesmo tempo, e não concluir disso absolutamente nada, pois tudo torna-se demais e obscuro, embora antes, claro, engane a todos com meu jeito instruído e elegante de ser absurdamente oco, mas abrangente.

A intenção era falar de vícios e de pessoas interessantes, e daqueles dentro destas, mas a digressão me tombou e fiquei no meio do caminho a adivinhar para que lado correu meu cavalo. Mania de cavalgar com a cabeça pendurada à lua.
 
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