quarta-feira, 17 de junho de 2009

Sereias

quarta-feira, 17 de junho de 2009


Folgo em pensar que um terço da vida já me tenha passado. Os cientistas andam querendo esticar o denominador, buscando em seus japoneses distantes de ilhas longínquas o segredo da longevidade. Mas é algo que não quero por pura preguiça de refazer as contas e abrir mão do romantismo de crer que da vida já comi um pedaço de três.

Um pedaço já se foi, tendo eu demorado para perceber que não se come com as mãos. Agora, versado na mesa e nos costumes, deliciosamente adio os talheres para contemplar a fartura, a beleza, assim somente com olhos, como a gracejar da vida antes de metê-la dentro, convulsiva, digestiva, vinho e pão.

Assim como se contemplam os amores antes de metê-los ao coração. Mas antes mesmo de chegarem a ele usam estes o mesmo nome. Fato! O nome que virão ter dentro já o têm fora, e por isso a tortura vem na mesma força, porque tudo é amor. Eu, ainda mais torto, me detenho no excesso romântico de não amar direito quem se deve, e amar demais quem não se pode, ou não se deixa.

Desde pequeno noto esse desvio de conduta. Uma criança calada, de olhar oblíquo, a espezinhar os amores que se lhe sentavam ao lado para dividir o lanche, enquanto torcia o pescoço para adorar os que indolentemente balançavam suas lancheiras doutro lado do pátio, acenando perigosos como as sereias de Ulisses.

Cresci, e já lhes adiantei ter andado um terço, mas pouco mudou senão o aperfeiçoamento da dissimulação. Atado ao mastro, ouço as delícias do mar, as baladas, as drogas da felicidade, mas já não me jogo em direção às pedras onde as ninfas tremeluzem suas caudas úmidas e espumantes.

Sou mais forte, mais embrutecido. Mas continuo a ser um desses grandes malditos de ouvidos abertos a tudo, com o coração a palpitar ao som da melodia doce de um mundo esquecido.

Esqueceu-se. Como às vezes dois corações se esquecem um do outro, um afogado na noite, outro vagando sem rumo. Ambos sem compreender por que razão, no dia seguinte, quando a luz penetra as alcovas do espírito, batem tão desesperadamente na vontade de trocarem entre eles uma simples palavra.

E essa vontade é tudo; diz tanto com tão pouco. Mas nos é difícil compreender isso. Já são tantas as sereias, e tantos os cantos insindiosos, que não raro temos, apaixonados um do outro, dois Ulisses presos ao mastro. E o amor continua sendo mais misterioso que o próprio oceano.

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