segunda-feira, 24 de agosto de 2009

A Bela e a Fera Dançando na Chuva

segunda-feira, 24 de agosto de 2009
Admite-se, em ópera clássica, que o papel em princípio idealizado para uma atriz magra e esbelta seja defendido por uma soprano rechonchuda que porte um vozeirão. A “licença poética” justifica-se pela grande exigência vocal requerida e também pelo aspecto erudito — e por isso menos atrelado à imagem — desse tipo de encenação. Mesmo assim, Maria Callas perdeu peso.

A Bela e a Fera, porém, em vista de seu caráter industrial e — por que não? — pasteurizado, segue a cartilha de uma ditadura contra a qual poucos ousam manifestar-se. Afinal, o público espera uma revolução social em cena? Se existe uma concepção preestabelecida, se as características físicas das personagens estão fixadas no imaginário das pessoas, e se a proposta da montagem nem de longe flerta com a ousadia ou INOVAÇÃO (como Romeu e Julieta no sertão, de Ariano Suassuna), por que derrapar justamente nos quesitos sobre os quais a expectativa humana recai, inicialmente, com maior curiosidade, sob o risco de incorrer em profunda frustração?

A atitude abominável de substituir, a um mês do espetáculo, os atores centrais do referido musical, segundo justificativas torpes, não expôs somente as fraquezas éticas do elenco, como também o descaso em relação ao simbolismo que uma história Disney representa, comprometendo mesmo a identificação imediata do público — que busca sempre repetir a experiência de rever os tipos a que está acostumado —, em prol de uma necessidade exagerada de “aparecer” custe o que custar, tais quais pavões em concorrência pela fêmea. Por mais que cante bem, ou melhor, como não evitar o estranhamento ao vermos no palco uma Bela afro (mesmo lindíssima), cujo parentesco parece mais chegado a Lefou do que ao próprio pai, o velho Maurice? Ou um Gaston gordinho, tendo-se-lhe, ainda, perdoado o aparelho ortodôntico? E não precisam falar de mim, porque mesmo eu, como Fera, hesitava quanto à minha estatura, inadequada ao papel.

Se o vulgo Espantalho faz questão de salientar que se trata de teatro AMADOR — como se isso justificasse seu amadorismo —, não haveria mesmo a necessidade de tal rigor na escalação do elenco.

No entanto...

Se amizades são recorrentes no teatro profissional, o que dizer então no amador? Como desenhar, portanto, a ÍNDOLE de uma pessoa capaz de fulminar uma amizade de ANOS para sustentar uma substituição que, além de não combinar com a idealização do espetáculo, privilegia pessoas que sequer são do teatro que patrocina o projeto? Por mais amador que seja um trabalho, um diretor, ao convidar uma atriz que não canta, e ao submetê-la a MESES de ensaios para dotá-la de tal recurso, assume com esta um risco que, por DECÊNCIA, deve ser corrido por ambos até o final. Se, aproveitando-se do afloramento das emoções do elenco por conta de desentendimentos e mexericos, Bela foi retirada para “ser protegida”, em espécie de “dois coelhos com uma só cajadada” (pois não sabemos se eu fui com ela, ou ela foi comigo), não era um fiasco que pretendiam evitar, mas a própria dimensão de amadorismo que, infelizmente, o Espantalho não consegue contornar em todos os quesitos desta montagem. Justo? Justo, se não houvesse tantos princípios e valores a serem preservados nesse tipo de decisão que envolvia amigos de longa data. Foi, portanto, um ato mesquinho e inescrupuloso, que deve ser marcado no currículo dos “profissionais” que o perpetraram.

A indignação, na escola, corre solta, mais contida em alguns, mais manifesta em outros; não se iludam, pois, de que não exista o incômodo geral criado por essa situação. Se escrevo agora, é porque desejo, por sentir-me lesado, que contas sejam acertadas — e que poderes sejam revistos — logo após o festival, pois, agora, preserva-se em relação a vocês uma espécie de “respeito humanitário” — o qual considero justo — pelo trabalho que até agora conceberam e que, portanto, devem concluir. Todavia, ainda é de estarrecer que pessoas do elenco, tão amigas e extremosas, tenham admitido servirem de comparsas nesse gesto criminoso — perdoem o tom hiperbólico, mas o exagero também é do mundo. E vai outro: Somos, mesmo em pequena escala, e resguardadas as proporções de nosso microcosmo, reflexo infeliz da política de nossa nação, cujo partido governista (PT) chega a render-se à chantagem barata, destruindo reputações importantes da própria legenda, para garantir o continuísmo de um senador corrupto em favor do apoio de seu partido (PMDB) à candidatura da predileta do então presidente da República nas próximas eleições.

Os prediletos do Espantalho não éramos nós, sabíamos, ainda mais depois que ele descobriu as maravilhas da técnica vocal aplicada ao canto — sim, pois esse ensinamento foi trazido a posteriori por seu namorado, que o convencera a desistir da antiga pretensão, a saber: levar o desenho da Disney aos palcos (com texto já transcrito, aliás), em cópia ipsis litteris de obra feita para o cinema e disponível em DVD (pasmem!), o que acendia em muitos o temor de uma reprise do fracasso de Cantando na Chuva, versão sem ritmo e desastrada de um clássico do CINEMA. O diretor deste espetáculo, aliás o mesmo de A Bela e a Fera, em mais uma atitude fascista e vaidosa, manifestou-se descontente com o fato de que sua produção havia se tornado na escola, naturalmente, um (mau) exemplo — pedagogicamente cabível, destaca-se — de COMO NÃO FAZER TEATRO, o que ele muito tentou censurar, em vão.

Agora, novamente “privilegiando” o teatro, ele elege como substitutas de seus dois “problemas” duas pessoas saídas de um coral, preterindo o rol de elenco da própria instituição que patrocina, em parte, seu espetáculo. Optou-se, assim — e nisso vai acentuada carga ideológica —, ensinar, em menos de um mês, interpretação e dança para bons cantores — o comentário geral do próprio elenco, após assistir ao primeiro ensaio dos novatos, foi de que estes não estão assim tão “preparados” como o Espantalho quisera lhes apresentar —, em vez de ir pelo bom senso de seu contexto profissional: ensinar canto, mesmo que desesperadamente, a bons atores — os quais não faltam à escola, e mesmo com experiência em música.

Que não sejam cínicos em afirmar que nossas eventuais faltas tenham nos desqualificado ao posto de protagonistas, e que a única saída, portanto, seria recorrer a cantores treinados. Por sermos “amadores”, e justamente por isso, deviam ter tido mais respeito e consideração, pois cada qual tinha boas justificativas para não cumprir a rotina mal programada de ensaios em pleno horário comercial, e cujo texto, despudoramente atrasado, eu mesmo ajudei a transcrever a partir de vídeos da internet. E como não me indignar, também, com o fato de que cheguei a participar de vários encontros de um coro que, em rigor, não precisava de minha colaboração (seria, sim, muito fácil abdicar daquelas sextas-feiras na casa branca, sem prejuízo algum ao meu papel, se pensasse tão-somente em mim), e que só cumpria para estreitar as relações com a maioria do elenco, com a qual eu somente poderia contribuir cantando por detrás das cortinas?

Por sorte, é permitido expressar-se livremente, assim como poderão, ao fim do musical, pegar do microfone e, aos prantos copiosos, dizer que “foi um grande orgulho estar aqui, ter concluído enfim um trabalho árduo e desgastante, superando obstáculos e pessoas que quiseram nos desestabilizar". Clap!, clap! clap! Será fácil. E serão aplaudidos. Mas não se enganem a si mesmos, porque a culpa é um fantasma que, terminado o pior pesadelo, continua arrastando seus grilhões por onde quer que nós vamos, assumindo diversas formas e pessoas. Ciúmes e traições são a tinta das grandes derrocadas, em especial as morais. Quanto a mim, continuarei escrevendo, posto teimoso e irritante que sou, e também porque estou seguro da máxima que valeu a Hamlet uma nota de credibilidade: “Sou cruel porque sou justo”.

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