sexta-feira, 23 de julho de 2010

Sobre a ética do Mal

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Não existe "alguém faltar com ética". Ética está em tudo. Tuas considerações do Bem e do Mal são o exercício pleno da tua ética. "Faltar com ética" nada mais é que chocar-se com outra diferente da tua, e autopresumidamente melhor que a tua, ou melhor que todas as outras. Ética, portanto, nunca falta. E, a meu ver, é profunda redundância querer discutir ética. É como se um vendedor batesse à tua porta e dissesse "Tenho aqui camisas, calças, blusas e também roupas", e tu te admirasses justamente neste último item.

Já senti vontade de matar pessoas e desossá-las tal um goleiro flamenguista. Minha ética, porém, é filha de um Estado, e recuo temerariamente ante seu poder punitivo. Quando dizem, pois, que alguém falta com ética, não é esta que falta, e sim a coragem dos que, vigiados por um Estado, não ousam exercer a plenitude de seus ódios e paixões, e por isso, recalcados, saem a dizer que tudo falta ao mundo -- amor, respeito, ética, decência --, quando no fundo sonhariam dar a carne do ex aos cães, se não se sentissem eternamente policiados por um Estado "severo" ou pela própria consciência da culpa e arrependimento.

A maldade humana é, sim, coisa muito ética. E é salutar que esta seja uma ética de poucos. Pois, sendo ela a ética de super-herói (poucos são corajosos a ponto de assumir, e suportar, a maldade dentro de si), nada lhe falta senão a humildade, e um mundo sem pessoas humildes seria particularmente odioso e inóspito a quem se habitou a elevar-se e flanar pela existência pisando delicadamente sobre várias cabecinhas ocas e assustadas.

A visão de cima dói, mas nada melhor que ser amortecido por um mundo que ignora a própria maldição. Seria desesperador viver entre tantos espíritos melancólicos do "sentir muito profundamente". Por isso me alegro, verdadeiramente me alegro, quando posso acompanhar, por detrás das cortinas semicerradas da janela de casa, a minha velha vizinha gorda a cantarolar uma música qualquer enquanto lava, tão alheia aos mistérios de tudo, a sua encardida calçada.

Ela é tão feliz, mas tão feliz, que minha maldade nunca jamais poderia penetrá-la. E mesmo se viessem a assustá-la dizendo que a água um dia será finda, ela afirmará que este dia não será dela (sem reconhecer o Mal nisso, claro), e ainda observará que o oceano é grande e azul (sem ocupar-se do Sal nisso, claro). E que não destruam a felicidade de minha vizinha!

Deixem-na cantarolar, desperdiçar recursos e ligar a TV para indignar-se com a falta de amor ao próximo, sempre ao assistir às notícias de um crime (oras!) passional. Carrego por ela a melancolia dos séculos, a assustadora verdade insuspeita, o grande terror pelo destino miserável de toda a sua família.

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