segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Orfeu

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009
Orfeu resgatou Eurídice da morada dos mortos. Menos mitológica, porém, é a nossa empreitada. Vivemos a ressuscitar nosso cotidiano de miséria com algum artefato mais sublime. Mas os tempos de hoje não captam o sublime. Antes, desmerecem-mo. Tacham de esquisitos os que porventura dele bebem. Impenetráveis, arrogantes, dissimulados, fracassados. Se vivem então de forma ostensiva e franca, tratam de queimar-lhes a reputação, pois uma vida de realização de desejos desafia — e subjuga — as vidinhas pautadas pela contenção das vontades — ou pela hipocrisia que prega que um caráter é tão mais louvável quanto for a discrição ou dissimulação de seu portador. Afinal, um fama não conhecida nunca será uma má-fama.

E eis que a mediocridade varre os corações. Da morada dos mortos, apaixonam-se por carros, por rendas e contatos, por uma genética desejável. Desprezam a verdade, o ímpeto, a imperfeição inquietante. E de pouco adianta bancar o Orfeu e tentar tirar viva alma daquela morada. Preferem envelhecer mal, necessitar de ansiolíticos e dizer que o mundo é dos sortudos e dos espertos — mesmo sem ser um coisa nem outra e ter de se encostar em alguém para sentir-se incluído em tal mundo.

Como insuflar vida em um corpo que vive morto dia a dia? Como explicar que iremos nos arrepender dos nossos juízos mesquinhos quando formos nos deparar com a verdade inescapável? A saber, vamos todos morrer, mas nem todos terão sentido (em) alguma coisa.

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